PONTE

A música da África em reprocesso pelo mundo

Artistas de raízes africanas negociam com um senso estético pop e dialogam com outras culturas

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 26/04/2016 às 10:20
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Artistas de raízes africanas negociam com um senso estético pop e dialogam com outras culturas - FOTO: Foto:Divulgação
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"Vocês sabem pra qual direção fica Angola?", perguntou o DJ Batida antes de iniciar sua apresentação no palco do Rec-Beat deste ano, em pleno Carnaval do Recife. Na sequência, o angolano radicado em Portugal hipnotizou o público com uma combinação de beats pesados, frenéticos, alucinantes do techno e house music com texturas e ritmos vindos da kizomba e kuduro, tradicionais gêneros e danças africanos.

Ao fim, ele ergueu uma faixa que misturava as bandeiras de Angola e Portugal. Era um lembrete: a África está viva dentro de Portugal, do Brasil, do Recife. Batida (que, fora dos palcos, atende pelo nome de Pedro Coquenão) não é o primeiro nem o único a realizar esta fusão de ritmos étnicos afro com formas mais globais. Pelo contrário, faz parte de um momento singular de artistas de raízes africanas que negociam com um senso estético pop. Portugal é um caso especial para pensar sobre este fenômeno.

Além de Batida, os DJs Marfox, Firmeza, Niagara, Nidia Minaj e Nigga Fox (todos do selo lisboeta Príncipe Discos), Nervoso, a banda Buraka Som Sistema (atração do Abril Pro Rock em 2012) e outros trabalham em cima da mesma fusão musical – consolidada como o gênero afrohouse.

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DJ Firmeza discoteca em festa no Café OTO, em Londres. Foto de Marta Pina/ Divulgação 

“Eu não sei se é Portugal ou se é o mundo inteiro. Acho que é tudo diáspora africana”, comenta Batida em entrevista ao Jornal do Commercio. Nascido em Angola, o DJ deixou o país quando ainda era bebê, durante a guerra civil que começou logo após a independência do país do domínio português.

“Muitos dos artistas que saíram da África e especificamente dos países colonizados – no meu caso em particular, de Angola, mas também de Cabo Verde, Nigéria, Gana – foram para as capitais do mundo e depois acabaram por ter uma necessidade de reinventar a memória que têm. Necessidade de retomar ligações que foram perdidas com o tempo”, ele afirma.

Essas interações culturais estão dentro de uma ampla conjuntura que é também política, econômica e social e liga-se diretamente com o capitalismo. No século 19 já há indícios de uma indústria transcultural que eventualmente se desenvolveria para o mercado de entretenimento globalizado.

Autor de Sounds of The Metropolis, o musicólogo Derek B Scott mostra, por exemplo, que nesta época o Reino Unido, berço da revolução industrial, importava operetas da França e espetáculos de blackface dos Estados Unidos. Em contramão, exportavam o formato dos music halls e óperas da dupla Gilbert e Sullivan.

Para analisar este quadro global, o sociólogo Motti Regev criou o conceito de “cosmopolitismo estético”. Ele argumenta que no século 21 tem havido “um processo estético intensificado de proximidade, sobreposição e conectividade entre as nações e etnias”, com a consequência de que algumas práticas culturais que, antes, significavam identidades particulares, agora, se tornam parte de uma entidade complexa e interconectada. Regev salienta, no entanto, que esta “arte cosmopolita” não despreza culturas regionais, mas as torna disponíveis e abertas para interação com outras culturas.

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Siba: a África viva num maracatu "de baile solto". Foto de José de Holanda/ Divulgação

O pernambucano Siba aponta a música africana como elemento central de sua arte e, assim como o DJ Batida, destaca o processo de diáspora. “Pra mim é uma questão de referência básica, constitutiva, que está no cerne da minha música e do que eu faço. Sou do Recife, sou de Pernambuco e essa música é marcada pelo acontecimento da diáspora africana. Então a música contemporânea da África – dos anos 50, 60 pra cá – se torna referência mínima pra articular o entendimento do que eu faço”, afirma. 

Onda sonora que flui e reflui

Um exemplo daquilo que Motti Regev definiu por “cosmopolitismo estético” é como os ritmos caribenhos ska e reggae foram reprocessados pelos ingleses do Madness, The Clash e The Police. Ou como o blues negro foi adaptado para a invenção do rock nos anos 1950 e 1960. Ou, ainda, os DJs cariocas se apropriando do Miami Bass e batidas kraftwerkianas para erguer o funk carioca.

Nesta via de mão dupla, há também o processo contrário: quando as produções culturais que estão à margem do centro Inglaterra/ Estados Unidos abrem brechas no funcionamento maquínico do pop mainstream – lembre da colombiana Shakira, e de Rihanna, levando ao mundo com seu sotaque de Barbados ritmos caribenhos como dancehall.

Este mês foi lançado o álbum Konono No.1 Meets Batida, colaboração do DJ com o celebrado grupo de Kinshasa, subúrbio do Congo, ativo desde os anos 1960.

O Konono mescla rock, trance e levadas rítmicas africanas. Tudo é criado a partir de uma base instrumental que inclui o tradicional instrumento de dedos likembé elétrico com microfones artesanais de madeira e instrumentos de percussão feitos de sucata. Mesmo fora do circuito anglófilo, conseguiram espaços improváveis na música mundial. Em 2007, tocaram na música Earth Intruders, da cantora Bjork – outra outsider pop. Já no ano seguinte foram indicados ao Grammy, prêmio que venceriam em 2010 ao colaborar na faixa Imagine, do The Imagine Project, do tecladista Herbie Hancock.

O grupo Tinariwen, que apresentou- se no Rio de Janeiro e São Paulo no mês passado, também venceu o Grammy em 2012. Formada no fim dos anos 1970 por membros da etnia Tuareg – povo nômade que habita a região do Saara e norte da África –, a banda tem sua própria história entrelaçada ao destino desse povo, que sofreu violenta repressão do exército malinês na década de 1960. Como consequência dessa perseguição étnica e política, milhares de tuaregs buscaram exílio em países como Argélia e Líbia.

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Tinariwen: o blues do deserto por refugiados tuaregs. Foto: Divulgação 

Ao contrário da tradicional poesia de feitos heróicos de seu povo, o Tinariwen fala sobre política, saudades do lar e vida no exílio. São mensagens de esperança e resistência num estilo único, uma espécie de blues do deserto que recebeu por parte da imprensa britânica o rótulo de “Led Zeppelin da África” e até tocaram com Robet Plant e Carlos Santana.

Outro exemplo é o nigeriano William Onyeabor, que nos anos 1970 experimentava com sintetizadores sobre longas repetições rítmicas, esboçando os primeiros movimentos da música eletrônica (especialmente o acid house) no continente africano. Uma mistura de afrobeat, soul, reggae, guitarras surf e sintetizadores.

Entre 1977 e 1985, Onyeabor lançou, por conta própria, oito discos e então tornou-se um cristão radical, recusando-se a fazer ou falar sobre música novamente. Até hoje vive isolado em Enugu, no sudeste da Nigéria e não se sabe quase nada de sua história.

Em 2013, no entanto, seu som (que circulava apenas entre admiradores restritos e célebres, como Damon Albarn) voltou aos holofotes após uma coletânea de suas músicas ser lançada por David Byrne no selo Luaka Bop. O ex-Talking Heads, então, montou e apresentou shows com a Atomic Bomb! Band, supergrupo que incluía músicos do LCD Soundsystem, Hot Chip, Bloc Party e Antibalas, além do próprio Byrne.

Aquilo que por convenção chamamos de “música africana” não se trata de um monolito: é um processo ininterrupto, um jogo aberto à recriação constante de artistas por todo o mundo.




Um poço do qual todos podem beber livremente

As influências da África seguem em transmutação também no Brasil, especialmente em artistas com bases na cultura popular do maracatu e cavalo marinho.

A cantora Alessandra Leão é um bom exemplo. Além da marca afro nas harmonias polifônicas em trabalhos como a trilogia de EPs Língua, ela também produz em São Paulo a festa La Tabaquera, na qual atua como VJ enquanto Caçapa, seu companheiro de vida e arte, discoteca sons da África, América Latina e Caribe.

“Todos os meus discos sempre têm um disco de referência”, explica Alessandra. Em seu primeiro álbum solo Brinquedo de Tambor, que agora completa 10 anos, foi o caso do LP Batarsité, do músico de Madagascar Danyel Waro. “De modo geral, a música do Congo, o Congotronics (coletânea do Konono No1), Bombino (guitarrista do Níger) foram muito importantes. Desde os anos 1990, meu trabalho sistematicamente se relaciona mais com essa música e se entrelaça a ela como repertório substancial”.

Em comum, Siba e Alessandra refletem sobre uma descolonização do pensamento e das influências no intuito de
quebrar o engessamento institucional do “folclórico” ou “manifestação” – um “baile solto”, como Siba sintetiza no seu último disco solo.

“Para mim, é um elemento fertilizante”, analisa Siba. Eu não reproduzo essa música de jeito nenhum. É uma relação muito mais pessoal. Já teve um peso muito maior de romantismo, uma tentativa de busca de origens e referências que hoje acho que se dá de forma mais natural pela escuta mais atenta dessa música da diáspora. Atualmente, eu vejo uma relação mais íntima e intuitiva. Eu sinto que preciso menos da referência intelectual e menos ainda da questão etnográfica de imaginar uma pureza fictícia naquilo”.

Para Alessandra, essas influências “funcionam como um caminho de partida, nunca de volta”. Ela explica: “Os meninos do Metá Metá têm relação similar que é não olhar a ‘tradição’ como uma coisa arcaica ou que não se pode mexer, sem esse olhar saudosista que nem sempre é uma saudade sua”. E completa: “Eu nunca fui pra um maracatu ou cavalo marinho como se eu não pudesse fazer parte daquilo, como se aquelas pessoas fossem muito distantes de mim. Eu faço parte disso tudo e mesmo não tendo nascido no interior, mesmo não tendo nascido no Congo, essas músicas vêm de um lugar de onde vem a minha música, um lugar interior e não geográfico. É uma propulsão visceral”.


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Alessandra Leão: África como um ponto de partida, nunca de volta. Foto: Tiago Lima/ Divulgação

Os dois reforçam também analogias entre essas movimentações culturais africanas e o contexto particular local. “É um espaço mítico interior. A música da diáspora brasileira, africana, cubana... é quase como uma coisa só. E tem uma ligação muito profunda com o maracatu. É como se houvesse maracatu na música do Congo, no free jazz dos anos 60. Como se viesse tudo de um mesmo lugar”, diz Siba.

Alessandra reforça: “Não é como se a música da África fosse a nova Meca e a do Nordeste fosse atrasada, algo só do trato etnográfico. Luiz Paixão tem essa mesma importância, essa mesma potência. É olhar pra música africana, mas fazer esses paralelos pra música que está perto, senão fica só reproduzindo o estrangeiro, reafirmando o olhar pra fora apenas mudando o continente”.

Ouça a playlist especial no Spotify do JC:

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