A história do saxofonista e arranjador pernambucano Moacir Santos é uma das mais improváveis da música brasileira. Nascido em 1926 em Serra Talhada, Sertão do Pajeú, ele foi criado sem a presença do pai, que abandonou a família para juntar-se à força volante que caçava o bando de Lampião. Pouco depois, sua mãe morreu. E Moacir, aos três anos, mudou-secom os quatro irmãos para o município de Flores, cidade vizinha, sob os cuidados da madrinha.
Moacir entrou, então, para a banda municipal. Autodidata, nos intervalos dos ensaios fuçava os instrumentos do conjunto e aos dez anos já lidava com trompa, saxofone, percussão, clarineta, violão, banjo e bandolim. De menino pobre, órfão, negro e sertanejo, Moacir tornou-se um dos grandes maestros do Brasil. Aluno de Hans Joachin Koellreutter e Radamés Gnatalli e admirador de jazzistas como Duke Ellington, ele foi professor do primeiro time da bossa nova: Eumir Deodato, Baden Powell, Sergio Mendes, Nara Leão, Roberto Menescal, Carlos Lyra, e muitos outros.
Este ano, ao completar-se noventa anos do nascimento de Moacir e outros dez de sua morte, o Grassmass (nome artístico do músico produtor pernambucano Rodrigo Coelho) prepara um álbum em tributo ao mestre, justamente intitulado como Grassmass Tribute to Moacir Santos.
Em texto sobre o projeto, Rodrigo conta que foi atraído pelo trabalho de Moacir devido ao "uso da sua cultura natal como vórtice de dois pólos musicais". Analisando a obra do maestro, ele aponta que "os ritmos tipicamente brasileiros deram vazão a arranjos e contrapontos nunca antes vistos no mundo do jazz, e essa estética contestadora é presente em toda sua discografia. Mas o cume é sem dúvida o [álbum] Coisas”. Ele descreve o impacto daquele disco em sua arte: "Senti que o local poderia muito bem ser universal, que minha vontade em usar a música brasileira como ponto de conexão entre África e Europa, entre polirritmia africana e música concreta e eletrônica, era algo possível”.
Grassmass faz uma abordagem mais eletrônica e mântrica de Moacir. Foto: Christelle de Castro/ Divulgação
Coisas é uma joia pouco conhecida mas extremamente cultuada e seminal da música brasileira. Lançado em 1965 e relançado em vinil pela Polysom em 2013, o álbum mostra um jazzista de sotaque nordestino com pretensões de alçar a cultura popular ao patamar clássico. É deste LP a faixa Coisa nº 5, que foi rebatizada como Nanã e trouxe fama a Moacir ao ser, por indicação de Nara Leão, incluída na trilha do filme Ganza Zumba, de Cacá Diegues. A música ganhou letra de Mário Telles e desde então já registra mais de 150 regravações, incluindo versões que vão de Nara, Wilson Simonal, Tim Maia e Eumir Deodato a Céu.
Apesar de tudo, a popularidade daquela canção não chegou a todo o escopo da obra de Moacir e ele tornou-se uma espécie de "músico dos músicos". Quebrar esse estigma, buscar uma reavaliação e reacender o legado do maestro são as propostas das releituras do Grassmass. "Sempre me pergunto por que Moacir Santos não tem uma estátua erguida em sua homenagem no Recife. Poucos jovens conhecem sua obra, lá e ao redor do mundo. Então por que não fazer algo fora do jazz (já existem grandes tributos a ele em sua área)?", argumenta.
A proposta musical do produtor é chegar em "algum futurismo mais próximo dos mantras regados a candomblé do Coisas (1965) que dos floreios jazzísticos do Carnival of the Spiriti (1975), pela Blue Note”. Para isso, ele mergulha em sons eletrônicos e sintetizadores, estes fazendo as vozes que seriam dos sopros. Conta também com o percussionista Lucas dos Prazeres, discípulo de Naná Vasconcellos, em mais duas faixas. “Guitarras, percussão e modulares tecendo um soundscape contemporâneo inspirado pelo Coisas”, resume.
O disco já está gravado. Além de quatro faixas do clássico disco de 1965, o repertório também tem SukCha (extraída do álbum Saudade) e mais duas músicas inéditas inspiradas por essa atmosfera. A data de lançamento do tributo, no entanto, é incerta. O projeto foi aprovado no Funcultura e receberia a verba em duas etapas: a primeira seria destinada à gravação no estúdio Fábrica; a segunda, para o pagamento dos direitos autorais e prensagem do CD. Contudo, Rodrigo Coelho conta que o proponente Alberto Rio Lima Neto sumiu, sem deixar qualquer contato ou documento. Por isso, a segunda parte do incentivo encontra-se presa na Fundarpe.
Filme dedicado à fase americana
Outra homenagem a Moacir vem do cineasta pernambucano Daniel Aragão. O diretor prepara o filme The Brazilian, um longa ficcional sobre a imigração do maestro para os Estados Unidos nos anos 1960 durante o período da Bossa Nova. "Será um filme americano, road movie. Vai falar muito sobre o período da Bossa nos EUA. A brasilidade Hollywood. Moacir é o contraponto disso tudo, o grande gênio esquecido. Trabalhou com Henry Mancini que também era imigrante italiano em Hollywood", explica.
Daniel escreve roteiro para The Brazillian. Foto: Divulgação
"É um filme pra Oscar", brinca Daniel. "É tipo um Cidade de Deus feito a partir da música e com conexão direta com o universo da academia. A redenção do sertanejo, negro e órfão", comenta.
"O processo vai ser longo ainda. Não se produz nada de arte agora nesses tempos de guerra. O Brasil tá parado. O roteiro, no entanto, está quase pronto", afirma ele, que se diz em "asilo" nos Estados Unidos.
Música do maestro ensina jovens
Fundado em março, o Instituto Cultural Moacir Santos (ICMS) objetiva usar a música do maestro dentro de um projeto de inclusão social de crianças e adolescentes. Criado pelo administrador Fernando Andrade, 52 anos, o projeto recebeu de Moacir Santos Jr., filho do compositor, uma licença para utilizar a obra do músico sem propósitos comerciais até 2019. No primeiro ano, o Instituto montará uma orquestra de flauta doce na qual as crianças poderão aprender e se desenvolver musicalmente. Então, no ano seguinte, a ideia é distribuir os naipes e formar uma orquestra de câmara. O projeto final é um grupo composto por 20 jovens, dos 7 a 17 anos de idade.
O ICMS está registrado como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Portanto, a lei determina que a entidade filantrópica só poderá receber verba pública após três anos de sua fundação e, enquanto isso, o presidente Fernando Andrade busca parcerias com o setor privado. Até 2018, Fernando planeja um show com grandes nomes da música brasileira em homenagem a Moacir. "Já me reuni com Gilberto Gil, Toquinho, Leo Gandelman e João Bosco, Andre Rio, Maestro Spok e todos eles se mostraram dispostos".