No dia primeiro de julho, o aclamado grupo português Buraka Som Sistema encerrou suas atividades com um show lotado no jardim da Torre de Belém, ponto turístico de Lisboa. A data marcou também o nascimento de um evento anual com curadoria do próprio Buraka: o Globaile - Novas Coordenadas da Eletrônica Global, que chegava com o intuito de “confirmar de uma vez por todas a cidade de Lisboa como a capital da música electrônica global”.
Uma das principais atrações desta primeira edição do Globaile foi o paulistano MC Bin Laden, que fazia sua primeira turnê pela Europa. Autor dos hits Tá Tranquilo, Tá Favorável e Passinho do Faraó, ele participaria ainda do festival Warm Up, organizado pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que reúne artistas de “música eletrônica experimental” de todo o mundo e Bin Laden era o único brasileiro escalado – as passagens já estavam compradas, mas o consulado americano negou-lhe o visto de trabalho.
O episódio evidencia um longo movimento de renovação do pancadão, que se hibridiza com um amplo repertório de gêneros, especialmente a música pop e eletrônica. Os vocais de Bin Laden evocam uma levada de rap, enquanto a batida é erguida a partir de sons guturais ou estranhos (como um cachorro ganindo em Sem Querer Pisei no Cachorro). Delação Premiada, novo single da MC Carol, com produção de Leo Justi, é marcado por uma batida de trap, vertente da música eletrônica. O MC TH sampleou a música Blame, do DJ britânico Calvin Harris, em Aproveita Que a Mamadeira Tá Cheia, e, do Red Hot Chilli Peppers, em Vidro Fumê. Já Ludmilla, Valesca Popozuda e os novos trabalhos de Tati Quebra Barraco se conectam à uma linguagem e imagética mais pop.
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O musicólogo Carlos Palombini (leia entrevista completa) afirma que as bases musicais do funk "advinham de uma variedade de gêneros, entre os quais o electrofunk, o electro de Nova York, o electro de Los Angeles (é o caso do Volt Mix), o hip-hop da new school, o Miami bass, o Latin freestyle etc". No prefácio à edição nacional de Kraftwerk Publikation: a Biografia, o músico Paulo Beto, do projeto Anvil FX relata um causo curioso: "em 1986, fui a um baile funk só para poder estar num lugar onde se podia ouvir Kraftwerk e ver aquilo motivar uma multidão a dançar a recém-lançada Boing Boom Tschak, do álbum Electric Café, conhecida entre o pessoal dos bailes black e funk como Melô do Porco.
Com o tempo, o gênero se desenvolveu. Palombini explica: “É interessante observar que, na passagem dos anos 1990 para a primeira década do milênio, isto é, do Volt Mix ao Tamborzão (veja infográfico abaixo), há esvaziamento da tessitura na região dos agudos; e na passagem da primeira década do milênio para a segunda, isto é, do Tamborzão aos Beatboxes, ocorre o mesmo na região dos graves. A base é apenas um dos elementos da produção musical, ao lado de a capelas, pontos, viradas etc.”, analisa. “À medida que ela desocupa essas regiões para se concentrar no médio, deixa maior espaço para a inventividade do DJ-produtor. Há crescente margem de ação no que concerne ao trabalho do produtor musical, e consequentemente, maior abertura para hibridações com o arrocha, o sertanejo, o forró, a house, o techno, o trap”, conclui.
Bernardo Oliveira, professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e crítico musical, completa: “Penso que há uma diversificação de timbres e variação de estrutura mais livre em relação às tendências anteriores, sobretudo o proibidão”, diz ele. “Há uma maior preocupação com o controle dos sons e das estrutura em oposição à aridez proposital do proibidão. Basta escutar o que faz o DJ Sidney, DJ R7, Perera DJ, Omulu, Buarky, DJ Yago Gomes, entre outros, para perceber que a infusão com as vertentes eletrônicas internacionais, influenciaram no timbre e no tratamento da faixa, o que em muitos casos vem transformando a cara do funk. Às vezes acho que dá super certo, outras nem tanto”.
“Há uma preocupação maior com o processo e a pós-produção: manipulação de pitch (inclusive nas batidas), maior liberdade nas síncopes (às vezes usando o silêncio mesmo), uma pegada às vezes mais ‘atmosférica’ do que forte ou incisiva”, reflete. “Por exemplo, se você pega Devagarinho, com MC Delano, produção de Delano e Perera, perceberá que a faixa se estrutura a partir de uma série de referências, camadas e ideias. Tem o ‘rã’ do Bin Laden sampleado; cavaquinhos melodiosos; batida seca pacas, acompanhada por um grito e um tapa de pandeiro; vocal soulful com efeitos de ‘trim’; lá pelo meio, quando entra a voz grave, rola um pandeiro com toque de música indiana. No final misturam as batidas, um carnaval!”, comenta.
Skrillex é outro fascinado pelo som do pancadão. Ele incluiu a música Haha Bololo, de Bin Laden, na playlist Skrillex Select, onde o DJ recomenda faixas que tem ouvido e também fez um remix da canção, que incluiu em seu setlist. Em março deste ano, Bin Laden fez uma ponta no Lollapalooza no show do Jack Ü (dupla formada por Skrillex e Diplo) cantando Tá Tranquilo, Tá Favorável.
Após alguns singles de sucesso (Na Madruga chegou a ganhar remix de Branko, do Buraka Som Sistema), Bad$ista lançou seu primeiro e hômonimo EP, em abril. Apesar de defender as misturas, ela enxerga que a popularização do funk possui também disputas de poder. “O funk alcançou o mainstream porque finalmente entenderam o quão rentável é se você respeitar, e aproveitar, a lei de oferta e demanda. O que acontece muito é: gostam muito do funk, da batida, do grave, mas não gostam dos funkeiros (as), entende? Tudo bem você fazer uma festa em áreas nobres cultuando o funk, mas se os funkeiros colarem, vão ficar olhando estranho; ou, tudo bem você cantar Baile de Favela, brincar de ‘ser favela’ por uma noite, desde que a real favela não esteja ali, saca?”, critica. E segue: “Isso que me deixa brava. Quando você quer levantar uma bandeira e protagonizar algo de dentro do seu quarto individual, num apartamento no 10º andar de um condomínio que custa R$ 300 por mês. Assim é fácil, muito fácil.”
A crítica de Bad$ista, em entrevista concedida em meados de junho, soa profética no momento em que o Rap da Felicidade é entoado nas aberturas das Olimpíadas do Rio de Janeiro, mas sem a presença de seus autores, os MCs Cidinho e Doca. Pelo Facebook, a funkeira Deize Tigrona protestou: "Ué, gente porque o próprio Cidinho e Doca não vão se apresentar nas olimpíadas e sim outros artistas que vão cantar o Rap da Felicidade? Preconceito com os funkeiros? Preconceito com o funk... Estou indignada! O funk hoje em dia movimenta o mundo. Não adianta tentar nos camuflar, nossas vozes sempre irão ecoar!".