Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e dono do site Proibidão.org, o musicólogo Carlos Palombini pesquisa o funk, especialmente o proibidão, vertente socialmente condenada por fazer apologia ao crime. Em entrevista ao Jornal do Commercio, ele rebate as críticas de intelectuais ao pancadão e comenta a prática de criação experimental do funk e suas relações com o mercado.
JORNAL DO COMMERCIO - No artigo Como tornar-se difícil de matar você traça uma cronologia das batidas do funk a partir do Volt Mix, Tamborzão e Beatbox até por volta dos anos 2000. E quanto ao funk dos anos 2010, como você o analisa em termos sonoros e estéticos? É possível dizer que há uma relação maior como trap rap norte-americano?
PALOMBINI - Se há bases rítmicas padrão para cada época, aproximadamente correspondentes aos anos 1990 (Volt Mix), à primeira década dos anos 2000 (Tamborzão) e aos anos 2010 (Beatboxes), há também procedimentos característicos de variação. Os anos 1990 são marcados pelo uso de diferentes bases, versões instrumentais, geralmente no lado B de singles importados, das quais a mais popular foi o “808 Beatpella Mix”, habitualmente designado por “o Volt Mix”, utilizado de modo contínuo ou na forma do loop de seus compassos iniciais. Essas bases advinham de uma variedade de gêneros, entre os quais o electrofunk, o electro de Nova York, o electro de Los Angeles (é o caso do Volt Mix), o hip-hop da new school, o Miami bass, o Latin freestyle etc. — por esse motivo, é uma generalização grosseira dizer que o funk carioca derive do Miami bass.
Vou-me ater ao caso do Volt Mix. Ainda na primeira metade da década, ele passa a ser variado pela intromissão ou sobreposição de gravações de percussão afro-brasileira, ilustrada pelo berimbau. Em 1998 o DJ Luciano Oliveira, de Campo Grande, cria, para fazer crescer, para dar sustentação à sonoridade transparente do Volt Mix, o loop que viria a chamar-se Tamborzão. Concebido numa Roland R-8 MK-II, já em 1999 o Tamborzão se descola de sua matriz, o Volt Mix, concebido numa Roland TR-808, e adquire vida independente. Fica então sujeito a uma variedade de procedimentos de manipulação, dos mais simples aos mais complexos. Por volta de 2007 esse Tambor passa a ser modulado por formantes vocais, sonoridade que prevalecerá em 2009. A partir de 2010 os formantes assumem vida própria e se manifestam no papel de uma multiplicidade de bases, os Beatboxes.
É interessante observar que, na passagem dos anos 1990 para a primeira década do milênio, isto é, na passagem do Volt Mix ao Tamborzão, há um esvaziamento da tessitura na região dos agudos. E na passagem da primeira década do milênio para a segunda, isto é, na passagem do Tamborzão aos Beatboxes, há um esvaziamento da tessitura na região dos graves. Ora, a base é apenas um dos elementos da produção musical, ao lado de a cappellas, pontos, viradas etc. À medida que ela desocupa essas regiões para se concentrar no médio, deixa maior espaço para a inventividade do DJ-produtor.
Há portanto crescente margem de ação no que concerne ao trabalho do produtor musical, e consequentemente, maior abertura para hibridações com o arrocha, com o sertanejo, com o forró, com a house, com o techno, com o trap.
JC - Você acredita que hoje o funk pertence a categoria da arte experimental?
PALOMBINI - O funk é um gênero essencialmente experimental, como o foram o hip-hop e a house na origem. Seus criadores não partiram de uma educação musical formal para fazer a música, mas inventaram-na por meio da prática dos recursos de um instrumentário novo. Essa prática e suas descobertas resultaram no primeiro gênero brasileiro de música eletrônica dançante. Isso não significa que ele não tenha história no Brasil e no mundo. No universo da chamada alta cultura, onde experimentalismo é sinônimo de impopularidade, suas técnicas foram descobertas e teorizadas pela música concreta de 1948. Mas não é a ela que o funk se liga, e sim às tradições da diáspora africana. Afora o experimentalismo inerente a sua origem instrumental, o proibidão participa de uma estética experimental, na linha do menos é mais, capaz de atingir visualizações na casa dos sete ou oito dígitos. E há um terceiro aspecto nesse experimentalismo: o funk faz parte de uma cultura de sobrevivência que o obriga a transmutar-se a fim de preservar a vida. Também aqui ele é jogo, inclusive de cintura.
JC - Ao ascender ao mainstream, acontece uma suavização dos funkeiros, como Anitta e Ludmilla ou Bin Laden, gravando com Lucas Lucco. Há uma cooptação pelo mercado fonográfico?
PALOMBINI – Anitta e Ludmilla foram funkeiras que ascenderam ou desceram ao mainstream, mas ocupam posições relativamente subalternas na grande indústria fonográfica e sofrem constrangimentos associados a seus respectivos vínculos. O funk que ascende ao mainstream repete um processo de pasteurização pelo qual passaram o rhythm and blues quando deu em rock and roll; o rock and roll, quando chegou ao Brasil; a disco, o hip-hop, a house, o drum and bass. São músicas geradas no underground ou no gueto que ampliam seus públicos. Todavia os tempos mudaram. Não sei exatamente que proveito Ludmilla tire, mas há outras cooptações possíveis: a de KondZilla, a de Tom Produções. E há a possibilidade de certa autonomia com cooptações pontuais escolhidas. Creio que boa parte dos artistas trilhe seu caminho no difícil equilíbrio entre popularidade ou sobrevivência e fidelidade a si mesmo, para não usar a expressão carregada, “integridade artística”. Não foi diferente com Beethoven. Não me parece ser diferente no funk — não em todo ele, pelo menos. No proibidão isso é claro: vide Orelha, Menor do Chapa, G3, Smith, Dido e outros.
Dito isso, interessa-me sobretudo o funk que pouco tem a ver com o mainstream. Mas nem toda a concessão é uma concessão ao mainstream, e nem todo o mainstream é a grande indústria fonográfica.
JC - Em relação ao conteúdo lírico, qual seria a marca do funk contemporâneo? Como MC Bin Laden, MC Brinquedo e MC Pikachu se inserem neste contexto?
PALOMBINI - O conteúdo lírico no funk contemporâneo é uma questão vasta, haja vista a diversidade de subgêneros com poéticas distintas: proibidão, ostentação, putaria, comédia e outros menos em voga. O projeto das UPPs levou à extinção ou à domesticação dos principais bailes de favela na cidade do Rio de Janeiro. O subgênero mais afetado foi o proibidão. Gustavo Lopes, o Mc Orelha, declarou em entrevista de 10 de maio de 2012: "Mudou o proibidão. O bandido agora não quer seu nome no rap”. Não apenas o ato de nomear tornou-se mais raro, diminuíram também os ataques às facções inimigas, substituídos por críticas ao Estado. Veja Na Copa do Mundo quem vai vencer é o CV,do MC GEÉLE, postado no canal Tráfico dos Morros em junho de 2014; Trem Bala desgovernado (abaixo), de Thiago Praga, interpretado pelo MC Menor do Chapa, no canal KondZilla desde março de 2015; e Faixa de Gaza 2, do Mc Orelha, no mesmo canal desde outubro de 2015.
A ostentação, subgênero relativamente recente, também é uma das manifestações desse proibidão sutilizado. O videoclipe Pai das folhas (maio de 2013), do MC Léo da Baixada, mostra isso, especialmente quando ele diz, em destaque: "acha que é boy só pelas roupas, mas o instinto é vida louca!"
No caso da putaria, que conheço menos e portanto não coloco em perspectiva histórica, uma das característica dos MCs TH e Maneirinho, dois dos mais bem sucedidos, é o lançamento ou a divulgação de expressões ou frases que passam a conotar diferentes modalidades de pertencimento em situações cotidianas de acordo com o sujeito que as enuncie: “chefe é chefe, né pai?”, “hoje eu tô demais”, “os menó é sagaz”, “várias danadinhas no contatinho do pai” etc.
Por análise de um dos sucessos do MC Bin Laden, Passinho do faraó, eu diria tratar-se de um caso sui generis de uma espécie de humor que, embora não raro no funk, se vê levado aqui aos extremos do surreal, do onírico, do dadaísta, do metafísico (no sentido da pintura Metafísica). Refiro-me aqui ao primeiro vídeo de “Passinho do faraó”, lançado em 19 de abril de 2014. Pode-se fazer emergirem essas características por comparação com “Ralando o Tchan”, de 1997. Ao invés das areias escaldantes, a tumba;ao invés da “neguinha maravilhosa”, quatro homens, nenhum estereotipicamente bonito; ao invés das sonoridades evocativas de orientalismos híbridos, apenas o tum-ba, tum-ba, tum-ba entremeado das curtas emissões vocais superagudas do MC Brinquedo, e, a certa altura, um beatbox sem qualquer reverberação; ao invés de danças sensuais, movimentos constrangidos, mumificados; ao invés de sorrisos dentifrícios, lábios relaxados e olhos revirados ou perdidos; ao invés da câmara lambe-bunda, uma câmara fixa, tremebunda. Um conjunto de signos vocais e gestuais que evoca as poéticas dramáticas de Antonin Artaud e Jerzy Grotowski e é funkeiro no melhor sentido da palavra. No Passinho do faraó não há sequer passinho, e isso faz sentido.
PALOMBINI - No caso de Caetano parece-me uma demonstração de seu oportunismo e de sua incapacidade de autocrítica, nada que não se espere dele. Você não a citou, mas os casos de Marcia Tiburi e Vladimir Safatle são preocupantes na medida em que ambos têm aspirações políticas: Tiburi fundou um partido; Safatle é ou foi pré-candidato do PSoL à presidência da república. Quando se leva em conta tratar-se de duas candidaturas de esquerda, é alarmante. Respondi a Tiburi no texto que abriu o website Proibidão.org. Adriana Facina, Mariana Gomes e eu respondemos a Safatle em artigo que será publicado este ano. Tiburi não domina sequer o vocabulário da discussão que entabula. Em Safatle, apontamos cinquenta falácias, inadmissíveis num filósofo. O que esses textos demonstram é o apartheid entre certas esquerdas e a vivência de setores das classes populares.
A Xexéu, ilustre desconhecido, autor de um ataque sub-reptício à candidatura do deputado Marcelo Freixo à prefeitura municipal, respondi aqui. Minha colega Carla Mattos deu-se ao trabalho de responder ao pedantismo desinformado de certo senhor que responsabiliza a esquerda, cujos textos relevantes não leu, pela cultura do estupro, que grassaria no funk carioca (aqui).
Todas essas críticas — e eu poderia citar ainda as que pululam naquele blog defunto de nome hipermásculo, o Mingau de Aço — fundamentam-se numa combinação de ambições políticas com desconhecimento de causa e de literatura, às quais serve de molho muito Adorno não lido ou mal digerido. Mas nem todo o campo da esquerda está tomado por tais espécimes. Além dos supracitados, menciono Carlos Batista, Eduardo Baker, Danilo Cymrot e Dennis Novaes. Na musicologia, há Samuel Araújo e Thomaz Pedro.
JC - MC Bin Laden foi o único brasileiro escalado para a programação do Museu de Arte Moderna de Nova York para um evento que reúne artistas de “música eletrônica experimental” de todo mundo. O que isso representa para o funk e a música brasileira hoje?
PALOMBINI - Para o funk como um todo, um reconhecimento tardio que pouco o afetará em suas dificuldades cotidianas. Para a música brasileira, uma bofetada. É Bin Laden quem indica a Safatle, a Tiburi e a tutti quanti seus lugares na cultura, e não o contrário.
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