MÚSICA

Livro conta a história de Moacir Santos, ícone da música afro-brasileira

Segunda edição de biografia do compositor pernambucano é lançada no Teatro Santa Isabel com concerto da Banda Sinfônica do Conservatório

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 23/08/2016 às 10:32
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De sertanejo pobre, órfão aos três anos e negro nascido em menos de quatro décadas após a abolição da escravatura, o compositor, maestro e arranjador pernambucano Moacir Santos (1926 – 2006) se tornou um dos artistas brasileiros mais importantes nacional e internacionalmente. Um dos pioneiros da fusão entre os ritmos da música popular afro-brasileira com modos jazzísticos e composição erudita, o maestro, entretanto, não foi devidamente reconhecido em sua vida, principalmente em sua terra natal.

O relançamento de Moacir Santos, ou os Caminhos de um Músico Brasileiro marca mais um passo no redescobrimento da extraordinária obra do maestro por seu país natal. A segunda edição do livro, uma mistura de biografia e análise musical escrito pela flautista e pesquisadora carioca Andrea Ernest Dias, será hoje (23) às 19h, no Teatro Santa Isabel, com concerto da Banda Sinfônica do Conservatório Pernambucano de Música.

Os registros de data e local de nascimento de Moacir (cujo batismo foi assinado como Muacy) são imprecisos. “Acontece muito mistério na vida de uma pessoa que não tem muito recurso, ou melhor, quase nada, naqueles sertões bravios lá do Nordeste, e eu fui um deles”, comentou ele em depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, refletindo, como observa a autora, “a situação de grande parte da população brasileira, desprovida de direitos básicos de cidadania”.

Ao ficar órfão – sua mãe faleceu, seu pai perseguia cangaceiros em uma força volante – Moacir foi adotado pela madrinha Corina, mas, em sua ausência, ficava com várias outras famílias da região do município de Flores, no Sertão do Pajeú. Aos 9, o menino não perdia um ensaio da Banda Municipal. Passou a tomar conta dos instrumentos e, nos intervalos, aproveitava para explorá-los. Foi assim que aprendeu a tocar todos os instrumentos da banda: trombone, trompete, trompa, clarineta, saxofone, percussões, além do violão, banjo e bandolim. Seguiu tocando em pequenos eventos, como jogos de futebol do município, e, aos 14, fugiu de casa.

Capa de 'Moacir Santos, ou os Caminhos de um Músico Brasileiro' -
Jazz band de Serra Talhada, circa 1940 -
Moacir aos 17 anos, "O Saxofonista Negro", no programa Vitrine da Rádio Clube de Pernambuco, ca 1943 -
Cleonice e Moacir com o seu único filho, Moacir Santos Jr., ca.1950 -
Primeiro grupo de Moacir Santos em Los Angeles, ca. 1968-1969 -
Moacir Santos and The Fabulous Press, Califórnia, ca. 1970 -
Moacir Santos no Free Jazz Festival, São Paulo, 1985 -
Moacir com equipe de músicos e produtores na gravação do arranjo de "Capim", de Djavan, LA, 1982 -

Moacir seguiu “arribando” pelo interior e capitais do Nordeste, migrando sempre que era descriminado, por sua negritude, ao trabalho manual. Ele foi tocando em bandas municipais, filarmônicas e jazz bands – grupos que animavam as festas de clubes com repertório que incluía maxixes, valsas, baiões, sucessos das recentes emissões radiofônicas, abrindo o caminho da profissionalização de músicos e, segundo o crítico José Ramos Tinhorão, marcando o declínio da "europeização" e o início da "americanização" da música no País.

Em 1948, Moacir mudou-se com a esposa Cleonice Santos para o Rio de Janeiro, onde o “rapazinho do Nordeste” entrou na Rádio Nacional, o maior templo da música popular à época. Foi admitido como saxofonista na jazz band do maestro Chiquinho, para a qual também fazia arranjos. Impressionou logo de cara. Ao ser indagado sobre o músico recém-chegado, Chiquinho relatou aos diretores da Rádio Nacional: "O teste foi para nós, sr. diretor. Colocamos umas músicas para o rapaz e ele tocou tudo. Entretanto, ele colocou umas músicas para nós e nós não tocamos".

Mas, obstinado, Moacir seguiu se aperfeiçoando. Estabeleceu uma meta de cinco anos (alcançada em três) para tornar-se um “músico completo”. Foi estudar, entre outros, com os maestros Guerra-Peixe, Radamés Gnattali e Hans Joachim Kollreutter (de quem chegou a ser assistente), quando aprendeu a organizar suas ideias além da intuição, dando inicio a sua auto-intitulada "fase de consciência musical".

"A relação direta com Guerra-Peixe e Koellreutter e seus ensinamentos sobre composição permite supor que Moacir Santos enxergou nos novos conceitos a chave para a criação de uma música popular 'erudita' que soasse diferente do padrão do samba-jazz em voga, já bastante 'evoluído', aprofundando a fusão de padrões já explorada por outros maestros da música popular", escreve Andrea Ernest Young.

Os primeiros trabalhos de Moacir no Rio de Janeiro foram basicamente choros. Um deles, Gostosinho, chegou a ser gravado no LP Chiquinho e sua Orquestra de Danças (1956) e esta fase inicial foi revisitado por Mário Adnet e Zé Nogueira no CD Choros & Alegrias.



Contudo, o trabalho impactante de Moacir foi como professor do primeiro time da bossa nova. Em sua casa, dava aulas a João Donato, Nara Leão, Eumir Deodato, Sergio Mendes, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Baden Powell. Apesar de sua obra não apresentar traços da estética bossa-novista, foi chamado de “patrono”. “A atuação pedagógica de Moacir efetivamente influenciou esse grupo e contribuiu para adensar a qualidade de sua produção, não tendo se restringido a um modismo da época”, aponta Andrea Ernest Dias. “O melhor exemplo dessa influência está nos afro-sambas, conjunto de temas modais compostos por Baden Powell a partir dos exercícios de composição sobre os modos gregos que Moacir aplicava em seus cursos”.

MAGNUM OPUS: COISAS

Ainda no Rio, Moacir Santos gravou sua obra-prima: o seu álbum de estreia Coisas. É a síntese das ideias do artista. Neste álbum ele dá as primeiras mostas daquilo que Andrea Ernest chama de “mojo”, segundo a autora, “o seu próprio padrão rítmico, constituído por células recorrentes na música popular brasileira organizadas de maneira que se reconheça sua origem, mas principalmente o identifique como uma marca complexa e personalíssima”.

Pesquisando no acervo pessoal de Moacir, a autora encontrou um material valioso para análise de sua obra: um caderno com notas de cunho musicológico - cantigas de cegos, incelenças, temas de congada, de bandas de pífano e de guriabá e Jaraguá, personagens dos reisados - e temas originais do maestro, que vieram a integrar o Coisas e trilhas sonoras assinadas por ele na época.

"Foi o mais desconcertante disco instrumental dos anos 60. É natural que suas consequências ficassem para muito depois", escreveu o crítico Zuza Homem de Melo. Andrea Ernest Dias arrebata: "Moacir Santos realizou, em sua própria obra, uma espécie de acordo entre os códigos da música popular - que na maior parte das vezes se serve do tonalismo e do modalismo como principais suportes melo-harmônicos - e os da música atonal e serial, no que diz respeito à planificação desse material e à utilização dos choques intervalares. Junte-se a isso a consciente estetização do material rítmico afro-brasileiro, tratado com base nos mesmos princípios de organização e variação de motivos utilizados nos planos melódico e harmônico". 

RUMO AOS ESTADOS UNIDOS 

Em 1967, devido ao esfalecelamento da Rádio Nacional pelo golpe militar, com salários atrasados e contas a pagar, Moacir decide ir para Nova York, e depois, Passadena, na Califórnia. Devido à sua experiência na trilha de filmes do Cinema Novo, ele integrou as equipes dos renomados compositores de trilha sonoras Henry Mancini e Lalo Schiffrin, em 1968 e 1970, respectivamente. Trabalhando como ghost writer, colaborou na composição de trilhas famosas, como o seriado Missão Impossível e A Pantera Cor de Rosa.

Em 1971, ele vai ao show do jazzista Horace Silver. Ao cumprimentar o pianista no intervalo, Moacir ficou surpreso ao constatar que o músico já sabia quem ele era, pois já conhecia Coisa Nº5 – Nanã de jam sessions. Tornaram-se amigos. E por intermédio de Silver, o pernambucano conseguiu um contrato com a conceituada gravadora de jazz Blue Note, por onde lançou três álbuns, incluindo o indicado ao Grammy Maestro (1972). Em 1982, foi convidado por Djavan para compor o arranjo do futuro hit Capim, hit do álbum Luz.

OBRA REDESCOBERTA

Aos 71 anos, Moacir sofreu um AVC, em 1995. A partir daí viu surgiu um movimento de revalorização de sua obra por parte da classe musical. A primeira iniciativa, lista Andrea Ernest, foi o Tribute to Moacir Santos, liderado por Rique Pantoja no Brazilian Summer Fest, em 1996, no Ford Amphiteather, Los Angeles.  No mesmo ano, o maestro foi condecorado com a Comenda de Grau da Ordem de Rio Branco do Governo Brasileiro.

O saxofonista e produtor Zé Nogueira foi um dos principais divulgadores da obra do pernambucano. Ele conheceu a música do maestro na gravação de Capim, com Djavan. Depois, em 1985, como curador do Free Jazz Festival ao lado de Paulinho Albuquerque, chamou Moacir para a abertura do festival, além de incluir duas composições do mestre (Anon e Amphibious) em seu primeiro CD como solista.

Posteriormente, Zé Nogueira juntou-se ao violonista Mário Adnet e lançaram dois CDs fundamentais para difusão de Moacir Santos em seu país natal. O CD duplo Ouro Negro (2001) compilava composições do saxofonista com novos arranjos e novas letras, além de participações especiais como João Bosco. Distribuído internacionalmente, foi sucesso de crítica. O mesmo aconteceu com Choros e Alegrias (2005), com temas da primeira fase artística de Moacir.

O "brazillian Duke Ellington", como se refere Wynton Marsalis, assim foi estabelecendo-se, cravando seu nome gradualmente no DNA musical brasileiro. "Minha vida é um encadeamento sem fim. Meu pai tinha largado a gente, minha mãe morreu quando eu tinha três anos, depois fugi da cidade", desabafou Moacir. "Parecia uma criatura numa pedra no meio do mar, com as águas batendo, como se fossem as pessoas perguntando: 'Quem é você? Qual seu nome? Quando você nasceu? Onde você nasceu?', e eu não sabia de nada. Mas agora eu sei. Agora Eu Sei [Now I Know, regravada como Oduduá] é o título de uma das coisas aí, de uma música minha".  

CONCERTO

No concerto de hoje, a Banda Sinfônica do CPM, sob regência de Marcos FM, executa três composições do homenageado mais músicas premiadas nas duas edições do Prêmio Moacir Santos de Composição em 2008 e 2012 e um movimento da Suíte Ouro Negro, de Sérgio Gaia Bahia, ex-professor do Conservatório. É o momento de repetir a reverência de Vinícius de Moraes em Samba da Bênção “A bênção, maestro Moacir Santos, que não és um só, és tantos, como o meu Brasil de todos os Santos, inclusive meu São Sebastião”.

SERVIÇO:
Lançamento de Moacir Santos, ou os Caminhos de um Músico Brasileiro 
Hoje (23), às 19h, no Teatro Santa Isabel
Livro: R$ 30
Concerto: gratuito. 

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