Maranhense radicado no Rio de Janeiro, o cantor e compositor Negro Leo é mestre em inserir incógnitas e transtornar o corpo da canção brasileira, criando um espaço familiar e ao mesmo tempo estranho. Em Ilhas de Calor (2014) e Niños Heroes (2015), ele compôs letra e melodia a partir de gravações de sessões de improvisação livre. O seu novo álbum, Água Batizada, por outro lado, trilha um caminho mais pop, explorando timbres e texturas sonoras.
O disco tem três composições de Ava Rocha (Noite Invertida, Esferas e Borboletinhas Multicoloridas) com quem é casado e com quem irá gravar um novo disco em novembro, em residência artística promovido pela coletivo Contrapedal, em Bogotá.
JORNAL DO COMMERCIO - Em Ilhas de Calor e Niños Heroes as músicas eram barulhentas, ruidosas e caóticas. Água Batizada é melodioso, mais suave. Pop. Como aconteceu essa transição? Por que essa abordagem?
NEGRO LEO – Eu vou começar a falar sobre os efeitos: o que eu senti, de cara, foi uma coisa que Tazio Zambi [poeta e designer] me disse no Rio: geralmente quem ouve música experimental também ouve música tradicional, mas que o contrário quase nunca acontece. Por outro lado, o que viam de experimental na minha canção, eu entendia politicamente como inserção de vocabulários diferentes no campo da canção brasileira. Então não existe nenhuma preocupação de minha parte no sentido de explorar caminhos abertos por compositores experimentais no campo da música experimental, muito embora qualquer novidade naquele campo possa estimular minha criação cancional. Ilhas e Niños são discos, digamos, diegéticos, onde a própria narrativa evoca o processo do disco, caótico, ruidoso, com tempo e espaço ficcionais proprios. Como [Ornette] Coleman dizia: “vamos ver se tocamos a música, não o fundo musical”.
Água Batizada é outra história, é uma compilação de canções, muito embora, muita coisa, entre canções e recursos timbrísticos, tenha surgido no decurso das gravações, criando uma atmosfera mais homogênea pro disco. Eduardo Manso e Estevão Casé foram fundamentais na construção do som e na abordagem das canções. A transição foi natural, eu realmente queria fazer algo mais fácil, algo que pudesse ser escutado entre uma cagada e outra.
JC – O disco soa mais leve, mas tem músicas densas e pesadas. Noite, por exemplo, é sobre suicídio. Era um interesse que aparenta ser “cômodo” mas esconde algo mais inquietante?
LEO – Se existe algo inquietante no disco é o resultado pop dele. Acho que chegamos precisamente num lugar mais comercial, sem necessariamente cair na malha do gosto radiofônico. Guto Ruocco (produtor da Circus Produções) chegou a dizer que o Brasil precisa de rádios pra tocar o disco, o que, em parte, é verdadeiro. A música que causou maior impressão na minha filha, por exemplo, foi Outro Sentimento, que diz “papaizinho ama muito, papaizinho ama você, longe do papaizinho”. Toda vez que ela ouve, pede pra tirar chorando e diz “longe não”.
Outra coisa importante de dizer é que o disco foi gravado no Jardim Botânico a menos de 1km da Rede Globo, do que de certa forma não nos distraímos quando pensamos nisso tudo. Como eu disse outro dia, “acho até bonita essa coisa do jet set, Yoko Ono com John Cage e Michael Jackson”.
JC – Você citou o álbum Forever Dolphin Love de Connan Mockassin como uma referência para o novo disco e falou do seu interesse em trabalhar com a modulação de timbres e texturas. No debate no Museu do Estado você chegou a criticar o conceito de “plagicombinador” de Tom Zé, comentando sobre explorações de timbres e modulações. Pode explicar isso melhor?
LEO – Sim, foram várias referências, na real. Matheus Mota, Pedrinhu Junqueira, Bruno Schiavo, Giovani Cidreira, Pedro Dias Carneiro, Ava Rocha, Júlia Shimura, Pedro Kastelinjs, Boogarins etc, compositores que de certa forma têm pesquisas assemelhadas, cada qual chegando num resultado diferente. E acho que Connan é unanimidade entre eles. Veja você que o disco tem harmonias super convencionais, como as harmonias do Connan e, no entanto, soa “diferente”, porque a dimensão material do som não está apenas no sistema tonal, ou nos atonais etc. Essa é parte da minha crítica à plagicombinação como método teleológico de composição.
JC - Como foi o processo de produção do disco? Uma coisa diferente dos anteriores é que você usa muitas músicas de outros compositores, sendo intérprete.
LEO – Esse disco a gente usou o procedimento clássico de gravação: bases primeiro, overdubs, dobra de vozes, summing analógico, mix e master. Gravamos nos estúdio Rockit (mesmo selo por onde o disco foi lançado), que é um excelente estúdio no Jardim Botânico, do lendário Dado Villa-Lobos. Eu já fui intérprete em outras ocasiões, ja fui até crooner de bar, mas ninguém se lembra. Como eu disse, o disco é uma espécie de compilação e eu já queria cantar as músicas que cantei nele, inclusive, essas músicas foram escolhidas antes, quando eu já sabia que seria um apanhado de canções.
JC – Em seu show no Ocupa MinC, você disse enfaticamente: “Caetano Veloso é pelego”. Pode explicar melhor essa crítica? Você acha que a esquerda ainda busca aprovação de ícones do tipo de Caetano?
LEO – O que ocorreu ali foi o seguinte: um dia antes dessa ocasião, Caetano foi convidado pelo Fora do Eixo (coletivo fundado por Pablo Capilé) pra cantar na ocupação. Lembro que ele não tinha assumido a pauta Fora Temer, que àquela altura era uma posição que marcava a admissão do golpe. Pelo contrário, entronizava Fica MinC. Assumir Fica Minc sem assumir Fora Temer não foi pulsilanimidade apenas, foi a captura de um movimento para interesses particulares, uma espécie de locupletação do capital ocupante, que com todas as complicações, distorções e sectarismos existentes, tinha a força de uma juventude atuante... que se demonstrou frágil no momento em que precisou da chancela de Caetano – que, por exemplo, não dignou-lhes o galardão. Olha, francamente, a gente conhece sobejamente a atuação política dessas figuras, os discos são mais importantes.
JC – Você acredita que a arte e os artistas ainda podem criar algo transformador? Em nosso contexto político e em meio à mercantilização da cultura, a arte ainda tem uma potência?
LEO – Essa pergunta é complicada porque eu não me considero um artista fazendo Arte, entende? Não me levo tão à sério. De qualquer forma não contrario a opinião que o povo tem, de forma geral, de que arte é um quadro na parede. Há pessoas tomando seus perfis em redes sociais como experiência de construção de narrativas ficcionais, perfis que sao uma verdadeira performance virtual. O uso dessas tecnologias de rede tá requalificando inclusive a idéia de arte, mais ou menos como o cinema e a fotografia fizeram com o quadro e o que o fonógrafo fez com a música. Seja la o que for arte hoje, certamente tem uma dimensão prática e a potência é a reverberação do lance, inclusive pra além dos mecanismos de publicidade e propaganda da grande imprensa, que sempre chegam depois quando algo potente já está em curso.
JC – O que você quer com não se considerar um artista? É por falta de instrução técnica e formal? Você toca com músicos, circula entre músicos, se apresenta em lugares “musicais”. Não há algo de “articizado” nisso?
LEO – Eu quis problematizar a noção de arte. Já disse numa entrevista pra ti que me considero em parte comunicador, sobretudo em relação aos efeitos práticos da minha música. A parte artística é mais uma acomodação do reconhecimento social da minha atuação no campo musical, mas não estou seguro de que existam artistas no sentido da força que essa palavra desempenha em relação ao seu contexto histórico hoje. Sem nenhum prejuízo da minha imagem, poderia dizer que sou mais artsy que artista.