MÚSICA

Anarcogospel de 'Meu Reino Não é Desse Mundo' aborda a fé e liberdade

Lançado na noite de Natal, álbum avança em tensiona sobre teologia neopentecostal, liberdade e Estado

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 03/01/2017 às 9:32
Foto: Capa do disco/ Reprodução
Lançado na noite de Natal, álbum avança em tensiona sobre teologia neopentecostal, liberdade e Estado - FOTO: Foto: Capa do disco/ Reprodução
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De Elvis Presley a Justin Bieber, de Frank Sinatra a Mariah Carey, de Beatles a Simone os discos natalinos são tradição da indústria da música. Meu Reino não é Desse Mundo Vol. 1 (QTV/ Malware Records) foi lançado de surpresa na noite de Natal, porém é mais do que um mero disco natalino. A partir da leitura e interpretação de caráter anárquico de diversas passagens do Novo Testamento, o álbum avança em uma discussão sobre a teologia neopentecostal, a liberdade, a fé e, em última instância, sobre o Estado.

O disco é assinado por um coletivo de músicos cariocas próximos ao selo/produtora QTV e à casa de shows Audio Rebel. Entre eles estão Thiago Nassif (guitarra, kalimba, flauta), Lucas Pires (fitas cassete), Bruno Schiavo (guitarra), Renato Godoy (bateria) e Negro Leo (voz, teclado, violão), que tomou a frente na concepção do disco.

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O cantor Negro Leo é umbandista batizado na Igreja Católica e comandou o projeto. Foto: Igor Marques

“Anarcogospel é a interpretação das escrituras considerada a partir das seguintes pontificações: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus e meu reino não é deste mundo. Substitui o pronome demonstrativo deste por desse pra situar o mundo próximo da pessoa a quem se fala e longe da pessoa que fala. Acho que dá um tom mais dramático e urgente de não pertencimento que completa a ideia da palavra de Deus anárquica”, diz Negro Leo, que é umbandista batizado na Igreja Católica e filho de uma umbandista que se converteu ao catolicismo.

"A idéia começou à vera em maio desse ano, quando eu retomei minhas leituras da Bíblia considerando essa ênfase das iurd (Igreja Universal do Reino de Deus) no velho testamento. Mas Jesus dizia: 'a lei e os profetas duraram ate João (Batista)'. Isso me causava incômodo, uma religião cristã que na real era menos cristã que 'judaica' - digo judaica porque é a partir de uma perspectiva do velho testamento, mas não pra falar de judaísmo strictu sensu, até porque os fundamentos do judaísmo sao mais complexos que o legado do velho testamento e eu nao quero jamais incorrer em anti-semitismo", detalha.

REVIRAVOLTA

Usando os Evangelhos de Mateus, João e Lucas, é deflagrada a reviravolta das leis hebraicas e a destituição do Antigo Testamento. Em contraste ao Deus sem nome e iconofóbico, Jesus de Nazaré diz: “vós sois deuses”. E ainda: “eu não julgo a ninguém” – duas das 16 músicas do álbum, gravado em esquema lo-fi.

A faixa Não Vim Chamar os Justos remonta outro momento emblemático. Quando Jesus e os seus discípulos estavam sentados à mesa com coletores de impostos e pecadores, os fariseus perguntaram aos discípulos: por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores? Ouvindo-os, Jesus replicou: “os sãos não precisam de médico, mas os enfermos. Misericórdia quero, e não sacrifício. Porque eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento”.

Tendo em vista a vitória de Marcelo Crivella para prefeito do Rio de Janeiro (um bispo evangélico e intolerante chegou a classificar a homossexualidade como “conduta maligna” e “terrível mal”) e o crescimento das Igreja Universal (presente em mais de 200 países), Meu Reino Não é Desse Mundo dialoga com um contexto específico. Mas é também um enfrentamento maior e mais agudo do que uma simples “crítica”.

No texto de apresentação do álbum, o crítico Bernardo Oliveira aponta, em referência a Deus é Amor (clássico na voz de Gal Costa): “negamos o Deus da ira, abraçamos o Deus de Jesus de Nazaré e de Jorge Ben: ‘Deus é a vida, a luz e a verdade. Deus é o amor, a confiança e a felicidade.” 

Leo completa: “A ideia mais urgente por trás disso é fundar uma igreja experimental, por mais contraditório que pareça. Afinal, seria a única maneira de disputar de maneira séria o arrebanhamento neopentecostal, criando um lugar de identificação e coesão a partir desses preceitos do anarcogospel”.

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