"Um festival de monotonia, como se os caras no palco não tivessem motivados para coisa alguma". O comentário é de Hermeto Pascoal sobre o Abertura, uma tentativa de retomada da era dos festivais, em 1975, pela TV Globo. O "Bruxo" foi demasiadamente severo. Pelo menos quanto à participação de Alceu Valença, que deixou a comissão julgadora em apuros. Ela concedeu o primeiro lugar a Como um Ladrão, de Carlinhos Vergueiros, mas não poderia deixar Vou Danado pra Catende, de Alceu Valença, sem premiação.
O impasse foi resolvido com a criação de uma categoria que não constava do regulamento a de "Incentivo à Pesquisa". O Abertura coincidiu com o lançamento de Molhado de Suor, primeiro álbum solo de Alceu Valença, pela Som Livre, a gravadora ligada ao sistema Globo. Ao mesmo tempo, ele estava nas telas dos cinemas no Rio, como ator, em A Noite do Espantalho, de Sérgio Ricardo (foi inclusive um dos indicados à premiação de melhores do cinema brasileira de 1974, pelo Instituto Nacional do Cinema, o extinto INC). Vou Danado Pra Catende batizou o show do disco Molhado de Suor, apresentado no teatro mais cult do Rio, na época, o Teresa Rachel, em Copacabana.
A história é bem conhecida. No início, na plateia só se viam os amigos de Alceu Valença e convidados. Já pensando em voltar para São Bento do Una e criar galinhas, conforme confidenciou à então crítica musical Ana Maria Bahiana, Alceu adotou a tática do "ou vai ou racha". Botou a boca no megafone e anunciou o show aos berros, na rua do teatro, a Siqueira Campos, uma das mais movimentadas da movimentadíssima Copacabana.
Os ingressos passaram a ser disputados, filas formavam-se diante da casa de espetáculos. Com uma banda formada por Zé Ramalho (viola), Paulo Rafael (guitarra), Dicinho (baixo), Agricio (percussão), Israel Semente (bateria) e Zé da Flauta, o show foi gravado e lançado como título de Vivo! A foto da capa, de Mário Luiz Thompson, capta com precisão o espírito do espetáculo, um dos pontos altos da contracultura brasileira dos anos 70. A banda de pífano elétrica de Alceu Valença trazendo o interior do Nordeste para o Sul Maravilha (expressão criada por Henfil, no semanário alternativo O Pasquim), mas repelindo a cerebralização, ou a mistificação acadêmica:
"Não estou preocupado com este nordestinismo, e não suporto essa gente que pega um gravador cassete e vai para o Nordeste gravar bandas de pífanos e violeiros. Passam por lá, três quatro dias, recolhem um farto material, e fazem música em cima disso. Isso me soa falso, pois é gente que nunca se envolveu com o povo nordestino, que não tem por ele o menor carinho. Simplesmente usam a sua criação" (disse Alceu em entrevista ao Jornal do Brasil (em agosto de 1975).
Sucesso no teatro, de crítica, que não correspondia às vendas de discos, Molhado de Suor passou quase tão despercebido quanto o LP que Alceu Valença dividiu com Geraldo Azevedo, em 1972. Vivo! teve melhor aceitação, mas foi consumido por um público restrito, em grande parte de universitários. A Som Livre ainda estava longe de ser a gravadora da bagaceira musical, atualmente coalhada de funkeiros, sertanejos do CentroOeste e bandas de fuleiragem do Nordeste.
DISCOBERTAS
Mesmo vendendo pouco, Alceu Valença gravou o terceiro disco solo, Espelho Cristalino, que seria o último no Brasil nos anos 70 (em 1979, faria o Saudade de Pernambuco, lançado finalmente no ano passado, pela Deck). Saída recentemente em vinil, a trinca de álbuns de Alceu, com selo Som Livre, ganha reedição, em CD, pela Discobertas, na caixinha Anos 70, que traz um quarto álbum, Raridades Anos 70 (a capa reproduz um still do cantor no filme A Noite do Espantalho).
Das dez faixas de Raridades Anos 70, duas foram extraídas da trilha do filme de Sérgio Ricardo (Canção do Espelho e História que se Conta). Retrato 3x4 (publicada como poema no Jornal do Commercio antes de ser gravada) é da novela O Espigão. Também de novela é São Jorge dos Ilhéus. Um meddley com Borboleta/ Ciranda da Mãe Nina e Sabiá vem igualmente de trilha, a de Saramandaia. Com exceção das duas faixas
iniciais, vem tudo dos arquivos da Som Livre.
Uma fase cultuada da música de Alceu Valença, que passou tempos fora de catálogo e agora está disponível em todos os formatos, é aquela que atrai uma geração ávida pela música pernambucana alternativa, psicodélica, dos anos 70. Tempos de ditadura e ao mesmo tempo de quebra de regras, de liberdade criativa (mesmo tendo que submeter composições à censura prévia), de transgressões. Alceu viveu esta página infeliz da nossa história em ritmo de embolada e martelo agalopado.