Memória

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes (1946/2017)

Belchior morreu quando estava sendo redescoberto pela geração do século 21

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 01/05/2017 às 1:13
foto: divulgação
Belchior morreu quando estava sendo redescoberto pela geração do século 21 - FOTO: foto: divulgação
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"Dezenove PMs do 13º Batalhão, seis soldados do patrulhamento tático móvel do 1º BPM e oito seguranças quase não conseguiram conter ontem a multidão ­ mais de três mil pessoas ­ que tentava invadir o Teatro João Caetano para assistir ao show da dupla Belchior e Simone, na sessão da seis e meia. As filas começaram às 11h30, mas a aglomeração ,que congestionou todo o trânsito da Praça Tiradentes, atingiu o clímax às 16h30, quando as portas foram do teatro foram baixadas." O texto entre aspas é de uma chamada de capa do Jornal do Brasil, então o mais influente do país, em 1977. O cantor e compositor cearense Belchior estava no auge de uma carreira, que explodiu com o que é considerado seu melhor álbum, Alucinação, lançado em 1976, pela Phillips.

 Quarenta anos depois de um sumiço pessoal bizarro, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, nascido em 26 de outubro de 1946, em Sobral, a 250 km de Fortaleza, teve a morte anunciada, neste domingo (30), na cidade de Santa Cruz (RS). Morre (de causas naturais, que ainda estão sendo investigadas) exatamente quando se torna ídolo de uma geração nascida, a maioria, nos anos 90, quando ele já estava fora da mídia e, consequentemente, das paradas de sucesso.

 Em 2014, cantores e vocalistas da cena indie participaram de um tributo a Belchior, o álbum Ainda Somos os Mesmos, pelo site Scream & Yell (que tem o pernambucano Bruno Souto interpretando Alucinação). Tributos a Belchior são comuns em shows de barzinho descolado. Em 2016, Juvenil Silva, da nova geração de artistas recifenses, celebrou os 70 anos de Belchior com um show, no bar Mundo Novo, na Boa Vista, com a banda Corações Selvagens (nome tomado emprestado ao álbum Coração Selvagem, de 1977). No seu perfil no Facebook, ao tomar conhecimento da morte do ídolo, ele postou:

 "Amigos, desculpa não estar respondendo ninguém no inbox, mais tarde quando me sentir mais legal eu falo com todos. A ficha ainda não caiu e o nó na garganta tá desconfortável. Pra mim só existe uma certeza, a morte pode matar o homem, mas não a sua criação, o seu legado... Onde outros homens, assim como eu, levarão adiante".

 Os últimos anos de Belchior lembram, curiosamente, o roteiro de um filme cult, The Harder They Come (no Brasil, foi rebatizado de Balada Sangrenta) que tem Jimmy Cliff como protagonista. Ele faz o papel de um rapaz do interior, que se torna o bandido mais procurado do país, enquanto sua música estoura nacionalmente. O filme, dirigido, na Jamaica, por Perry Henzel, é de 1973, o ano em que Belchior começava a despontar para a fama, no programa Mixturação, da TV Record, produzido por Walter Silva, personagem fundamental para alavancar a carreira dos nordestinos recém-­chegados ao Sudeste.

 Além do Mixturação, Walter Silva produziu o álbum do Pessoal do Ceará, com Ednardo, Roger e Tety (Continental), e de Belchior, A Palo Seco (Chantecler, lançado em 1974). A Palo Seco foi o primeiro show bem estruturado de Belchior, dividido com o pernambucano Marcus Vinicius. Ao contrário dos conterrâneos que se uniram como se fossem um grupo do Ceará, ele professava sua individualidade:

 "Eu não sou representante do Nordeste, do Ceará, de coisa nenhuma. Se o Nordeste aparece na minha obra, é como raiz, matéria­-prima, em termos afetivos (me afetou). Nosso trabalho não está apadrinhado nem por região, e por gênio nenhum" (à Folha de São Paulo, em 1973).  Era arrogantemente provocador: "... estamos entrando no mercado para pôr em cheque suas proposições, pois se o tropicalismo atacou o bom gosto oficial da música brasileira, ele mesmo criou um novo critério, que hoje está envelhecido e envilecido ao longo de várias gerações. E é contra esse velho bom gosto deles que estamos chegando como nosso trabalho, dialeticamente" (mesma entrevista à Folha de São Paulo).

 Amparava­-se no talento, e em pessoas que o reconheciam, como Elis Regina, que fez de Como Nossos Pais um sucesso nacional.

 AO SUCESSO

 Paradoxalmente, o mais independente da leva de cearenses que estourou no "Sul" se deixou levar pelos executivos das multinacionais. Virou estrela quando as gravadoras montavam um projeto para o mercado mais promissor da América Latina, que logo seria o quinto do mundo. Foi o primeiro contratado da Warner brasileira, fundada por Andre Midani, até então presidente da Phillips, que tinha Belchior como o maior vendedor de discos.

 A contratação aconteceu no ano em que a disco music irrompeu avassaladora mundo afora. Midani queria seus artistas populares com roupagem disco, e foi isto que fez o produtor Marco Mazzola: "Eu transformei toda a música para que virasse um coisa com apelo de fazer sucesso... Então eu fiz esse negócio, quer dizer, eu mudei toda a música dele, toda a música com a finalidade de fazer isso. E ele foi sucesso", contou Mazzola à Rita de Cássia Morelli para a dissertação acadêmica, transformada no livro Indústria Fonográfica Um Estudo Antropológico, obra fundamental sobre o mercado discográfico brasileiro.

 Os álbuns Coração Selvagem (1977) e Todos os Sentidos (1978) fizeram sucesso, mas a crítica detestou, e os fãs estranharam. Mais ou menos o que, na mesma época, aconteceu com Caetano Veloso que passou a tocar com a banda Black Rio, e Gilberto Gil, que gravou com os metais da Earth Wind & Fire.

 Repulsa reforçada pela mudança na imagem do artista, até então contestador, que virou adepto de charutos cubanos, pele bronzeada, que preferia falar de sexualidade em vez de política. Trocara o bardo Bob Dylan pelo psicanalista Wilhelm Reich (autor do influente A Revolução Sexual, 1936).

 Em 1979, Belchior voltava à trilha de Alucinação, com Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo, que lhe daria seu último grande sucesso, Medo de Avião. Continuaria na Warner até 1982. Daí em diante sua carreira é errática. Problemas pessoais a complicam ainda mais. Seu último disco, de 2005, pouquíssimos escutaram, Belchior Acústico (Arlequim), dividido com o violonista mineiro Gilvan de Oliveira (registrado em 1996, em BH). Uma volta ao passado, com regravações de suas canções mais conhecidas.

 Um rapaz latino­-americano, sem parentes importantes, e vivendo no interior, deve ser a frase de efeito mais usada para decorar os textos sobre a morte de Belchior, paráfrase dos versos iniciais da canção que o fez decolar para a fama. Mas, na situação em quem ele viveu seus derradeiros anos, cabem melhor os versos de uma canção menos popular, de Alucinação, sua obra­-prima, Não Leve Flores: "Tudo poderia ter mudado, sim/pelo trabalho que fizemos ­ tu e eu/Mas o dinheiro é cruel/e um vento forte levou os amigos/para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos/e nossa esperança de jovens não aconteceu".

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