O bate-boca entre artistas, e as discussões nas redes sociais, sobre o modelo que as prefeituras do Nordeste formataram para as festas juninas, privilegiando a música sertaneja em detrimento do forró, não vai ao cerne da questão. São descabidas as comparações entre o São João de Caruaru ou de Campina Grande (PB) e a Festa de Peão de Barretos (SP). Esta última é um evento privado, iniciado há 60 anos, mas que só se tornou nacionalmente conhecida em meados da década de 80. A festa de Barretos, animada apenas por cantores e cantoras de música sertaneja, não é aberta ao público. Paga-se para se ter acesso ao local do evento, e não se paga pouco.
Já o São João é comemorado há séculos, uma tradição herdada dos portugueses. É celebrado em todo o país, mas no Nordeste é a festa mais importante. Mais do que o Carnaval. É também festa religiosa, onde se cultuam Santo Antonio, São Pedro e São João, tendo seu lado profano, com música e danças. Acrescente-se ainda moda e culinária.
Até se adotar o modelo, também copiado para o Carnaval pernambucano, de palcos e shows com artistas renomados, mesmo que não tenham afinidades com a tradição junina, a festa era feita pelo povo, literalmente. Nos bairros, os próprios moradores cotizavam-se para organizar quadrilhas, fogueiras, decorações, etc. Não se saía de casa para assistir ao São João. Brincava-se perto de casa. Nas cidades maiores comemorava-se também em clubes, que cobravam pelo acesso ao local. Mas era uma parcela pequena da população que os frequentava.
Em 1983, o prefeito José Queiroz divulgava os festejos juninos de Caruaru, apresentando o povo como atração de um São João participativo, com 130 ruas ornamentadas. Os visitantes tendo a opção de brincar nos palhoções, animados por algum forrozeiro conhecido, com ingressos a preços módicos.
Já em 1991, anunciava-se a presença de 250 mil turistas durante o São João em Caruaru (que tinha o mesmo número de habitantes) e atrações que já não comungavam de afinidades com a época: Beto Barbosa, o então Rei da Lambada, os sertanejos Chitãozinho e Xororó, e os baianos Moraes Moreira e Luiz Caldas. No entanto, aqueles artistas que se apresentaram na Capital do Forró não foram pagos com dinheiro público nem de patrocinadores associados à prefeitura. Eram contratados pelos produtores da Palladium, casa com capacidade para seis mil pessoas.
Começava aí a "briga" junina entre Caruaru e Campina Grande. Mas não cidade contra cidade. O caruaruense Palladium disputava público com o campinense Spazio, outra megacasa de shows, criada na mesma época na cidade paraibana. Ou seja, dos propalados 250 mil visitantes que visitaram Caruaru durante o São João, a imensa maioria o fez pela festa, não pelos cantores importados. Hoje se credita às estrelas sertanejas a multidão que comparece ao Pátio de Eventos, principal palco do São João caruaruense.
Mas a grita está vindo apenas dos forrozeiros, que reivindicam o espaço perdido. Não se sabe de intelectual interessado na polêmica, muito menos a classe política. Isto porque São João é tratado quase sempre como um acontecimento turístico e não cultural. Os prefeitos estão interessados apenas em números, na quantidade de pessoas que passou pela cidade, na ocupação dos hotéis. Há muito tempo, a briga não é mais entre Palladium e Spazio, e sim entre os dois municípios que se arvoram a fazer o maior São João do mundo. Maior, literalmente, em números.
E o modelo é replicado por vários municípios, com o mesmo leque de artistas e os mesmos produtores. Os artistas famosos foram tirados dos espaços fechados e levados aos palcos em praça pública. O principal da festa é a atração musical. Independente de gênero, o importante é que esteja em evidência, apareça na TV, toque na novela. Inegavelmente, é uma disputa desigual para os artistas nordestinos, que não desfrutam do mesmo espaço na mídia do Sudeste, mesmo que cobrem cachês modestos em relação aos importados.
IDENTIDADE
As ditas autoridades competentes querem saber de multidões, não se incomodam se a identidade cultural de um povo está ameaçada de destruição. "Destruição" não é hipérbole. Basta lembrar a vaquejada de Surubim, no Agreste, cuja trilha de aboios e forrós foi substituída pela música das bandas de fuleiragem e pelos sertanejos. O aboio é um gênero musical em extinção, assim como as quadrilhas juninas se tornaram "escolas de forró", com formato idêntico aos das escolas de samba cariocas. Com forró de enredo, passistas, alas, cenografia e destaques.
O cerne da questão, que quase não está sendo discutido, é que não se tratam grandes e tradicionais manifestações populares como cultura, e sim como atração turística. "É como se cultura no Brasil fosse apenas museus, pedra e cal, arte pós-moderna, filme cultural, teatro de vanguarda, biblioteca. Tudo isto é cultura, e não podemos abrir mão. Mas São João, Iemanjá e chope também são", como escreveu Joaquim Falcão em um artigo no Jornal do Brasil, em 1991, quando o São João de Caruaru ainda era uma festa cultural, não um destino turístico.