GARANHUNS - Havia alguma tensão nos bastidores. Mas logo depois das duas horas da manhã, Baby do Brasil comandava a banda na execução e Is This Love, o reggae de Bob Marley acionado para encerrar o show que deixou o público da praça Mestre Dominguinhos em transe por quase duas horas. Por conta de um termo de ajuste de conduta para os eventos públicos da cidade, as apresentações não podem ir além do horário – sob o risco de terem o equipamento de som bruscamente desligado pela polícia.
Uma rápida negociação entre a coordenação do evento e o comando geral, e Baby conseguiu alguns minutos para terminar as últimas duas canções do repertório. “Consegui mais duas? Deus é maravilhoso!”, comemorava, no palco, a deidade pop de cabelos roxos. Atrasos sucessivos na passagem de som à tarde ameaçavam o cumprimento do cronograma.
Com alguns dos melhores músicos em território nacional a seu serviço, um naipe inacreditável de cordas, a veterana cantora revelada ali atrás com os Novos Baianos confirmou que seu filho Pedro Baby só pode mesmo ter tido um chamamento divino quando a escalou para esse show com os grandes sucessos da carreira. Cósmica, Telúrica, Masculino e Feminino, Menino do Rio foram tocadas – e acompanhadas – como mantras das pistas.
Mais cedo, Maciel Salu, Adiel Luna, o baiano Mestre Bule Bule e vários brincantes encheram o palco com um caleidoscópio vibrante de escolas da cultura mais tradicional popular. Corte rápido de cena, e a carioca Alice Caymmi (sim, antes que se pergunte, a neta dele mesmo) ocupou aquele palco pra fazer o que sabe: a terra tremer.
Alice abriu, sob a chuva, com uma versão dilatadamente percussiva de Rainha dos Raios, nome de seu último disco e seu melhor codinome. Saudou Iansã para, em seguida, fazer seu baile com o melhor que essa tal pós-modernidade pode nos trazer: a diluição das fronteiras invisíveis entre o que ou não ungido pelo cânone do bom gosto.
Alice reabilitou peças rejeitadas da axé-music e do pagode (Cilada, do grupo Molejo, parece ter encontrado finalmente um abrigo), soltou com generosidade funks de favela e, claro, sua versão digital de Louca. Show de lançamento do single com o hit da banda Kitara, esse é um momento de transição de Alice entre o cultuado Rainha dos Raios e o próximo álbum, ainda em definição.
RÔ RÔ
Enquanto as principais estrelas da praça Mestre Dominguinhos se preparavam entrar em cena, a veteraníssima Ângela Rô Rô não se fez de rogada e, diva sem palco, ocupou o grande tablado diante do Som da Rural, o veículo pop de Roger de Renor. Sem esforço, provocou uma animada aglomeração neste canto do Parque Euclides Dourado. Por uma hora e meia, Rô Rô, musa ferina aos mais de sessenta anos, imprimiu limpidez e ranhuras a clássicos absolutos de sua trajetória.
Sob o respaldo dos teclados do incansável Ricardo MCCord, seu mais fiel parceiro em décadas, confirmou seu lugar no imaginário afetivo nacional e, claro, deu o show de humor que costuma acompanhar o de música – sem cobrar a mais por isso.
“Querem Escândalo?”, perguntou ela, quando alguém gritou pedindo a música de Caetano. “Estou cansada, querido, já fiz um ontem!”. Fez pequenos comentários políticos: “Esse Temer é chato pra caramba, e ainda bem que eu ando a pé, porque a gasolina tá impossível”.
Fez escândalo nenhum: comportadíssima no quarto de hotel, Rô Rô tem mesmo é no talento que não envelhece o grande assombro. “Como diz Nelson Rodrigues, os idiotas vão dominar o mundo. Não pela qualidade, mas pela quantidade”, soltou, antes de mandar as idefectíveis Amor, meu grande amor e Malandragem, o sucesso de Cássia Eller inicialmente composto para ela por Cazuza e Frejat.
CABARÉ DE GARANHUNS
Na batalha artística contra as atrocidades da República de Weimar que o fariam ser eleito um dos melhores candidatos à câmara de gás de Hitler, o grande dramaturgo alemão Bertold Brecht encontrou no compositor Kurt Weill o grande parceiro para transformar em música seus petardos poéticos. Naquela Berlim dançando sobre a navalha da crise econômica e a iminência do nazismo em que o talvez maior nome do teatro ocidental se expressou, a chamada canção de cabaré cresceu como capim subversivo. Por pouco mais de uma hora da noite do último sábado, o grande cabaré de Brecht e Kurt Weill teve abrigo em Garanhuns.
Enquanto Baby do Brasil esperava, paciente, sua hora de poder começar a passar o som no palco da Praça Mestre Dominguinhos, Cida Moreira e seu piano,, assombrosamente magnéticos, eram a espinha pela qual desfilavam as canções teatralmente narrativas de Brecht. Funcionando na antiga estação de trem da cidade, o Teatro Luís Souto Maior ainda não tem isolamento acústico e precisa o tempo todo lidar com as interferências sonoras externas.
Com o auxílio luxuoso dos atores Arilson Lopes e Maeve Jenkings recitando os textos do alemão, histórias de canções sobre mortos e crianças disponíveis para serem fuzilados como paredes humanas de batalhões eram cantadas na voz de extensão assombrosa da soprano. Do muito grave a um carinhoso agudo em segundos, Cida, a voz do trovão, exibia também temas mais populares, como o classicaço Speak Low composto por Brecht em parceria com Ira Gershwin em seu exílio americano.
O teatro estava lotadíssimo; a cantora e os atores, ovacionados e o espetáculo, na grade, sinaliza a boa condução que a Fundação do Patrimônio Histórico e a Secult-PE vem dando a esta edição do FIG. Menos populismo e mais qualidade, para que, dentre outras coisas, um festival encontre sua melhor vocação: não apenas divertir, mas dar vazão ao que nem sempre a encontra e, sim, formar público para a diversidade das expressões da cultura contemporânea no Brasil.