Uma fã recifense dos Beatles, em Nova Iorque, conseguiu convites para o concerto de aniversário do baterista Ringo Starr, que teve a participação de estrelas do porte de Eric Clapton, Paul MCartney e Edgard Winter. No entanto, quase desiste do show quando descobriu que ia se sentar perto de Yoko Ono, a viúva de John Lennon. Assim como esta fã, centenas de milhares, mundo afora, continuam odiando a mulher que consideram a causadora da extinção dos Beatles.
Aos 84 anos, Yoko Ono pode não ter se livrado da antipatia dos beatlemaníacos, mas a crítica musical já não a trata mais como acontecia nas décadas de 60 e 70. Muito pelo contrário. Para a crítica de artes plásticas, Yoko é considerada um dos mitos vivos da vanguarda. Suas intervenções e performances, inclusive musicais, já eram elogiadas quando a fama dos Beatles ainda permanecia circunscrita aos adolescentes de Liverpool.
A japonesa, filha de banqueiro, que veio morar em Nova Iorque no início dos anos 50, estudou em uma das mais exclusivas escolas de Nova York, a Sarah Lawrence College, e ingressou no mundo artístico bem jovem. Esteve sempre envolvida com música. Seu primeiro marido foi o japonês Toshi Ichiyanagi, um dos principais nomes da música experimental no Japão, e começou a fazer intervenções em Nova Iorque apadrinhada por John Cage e La Monte Young, dois dos mais importantes músicos americanos de vanguarda do século 20.
Portanto, quando Yoko Ono conheceu John Lennon, tinha uma formação intelectual mais sólida do que a dele e, como a maioria dos intelectuais dos anos 60, considerava rock uma vulgaridade descartável. O primeiro disco da sua obra, que está sendo reavaliada, foi o álbum Two Virgins - Unfinished Music Nr 1, que lançou em 1968, com John Lennon, e que causou escândalo por estampar os dois nus na capa e contracapa.
Lennon convidou Yoko para escutar fitas que ele gravava com ruídos, música aleatória, experiências que não se encaixavam no trabalho dos Beatles (a exceção foi Revolution #9, criada com George Harrison e Yoko Ono, faixa do Álbum Branco, de 1968). Ela sugeriu que os dois fizessem sua própria música. Lançaram uma trilogia, Unfinished Music No 2: Life with the Lions, e Unfinished Music No3: Wedding Album, todos com música abstrata.
A trilogia foi relançada em 2016, pela gravadora canadense Secretly Canadian, que está reeditando toda obra musical de Yoko Ono, em CD e vinil, com faixas extras, nos 50 anos da feitura do citado Unfinished Music No 1: Two Virgins (a ser completada em 2018), numa revisão da obra da artista, incluindo uma exposição retrospectiva (que circula desde o ano passado).
POP
Chegam agora às lojas e plataformas digitais mais três discos, creditados apenas a Yoko Ono, lançados na primeira metade dos anos 70. Fly (1971), Approximately Infinite Universe (1972) e Feeling the Space (de 1973). Ao contrário dos três discos já lançados, com Lennon, afastam-se do abstracionismo sonoro e aproximam Yoko Ono da canção de formato convencional, ma non troppo. Fly tem uma bela balada, Mr.Lennon, e um rock, Midsummer New York, que lembra a new wave de NY no final dos anos 70.
Porém tem faixas como Toilet Piece/Unknown, o registro do som de uma descarga de vaso sanitário, ou Telephone Piece, o tilintar de um telefone, e a voz de Yoko Ono atendendo. Originalmente um álbum duplo, Fly contém temas utilizados no curta Erection, de John Lennon, A faixa que lhe dá nome é a trilha (de vinte minutos) de um curta dela. Dependendo do ouvinte, esta pode ser a composição mais ousada, ou mais maçante de Yoko Ono.
São vinte minutos de duração, metade dos quais de sons de frequências variadas, tirados do fundo da garganta da artista, outros dez minutos destes sons, com loops, tapes rodando ao contrário. Gravado na mesmo época de Imagine, Fly tem os mesmos músicos que tocaram no mais bem sucedido, comercialmente, disco de John Lennon, uma superbanda: Klaus Voorman, Eric Clapton, Jim Gordon, Bobby Keyes, Ringo Starr, Jim Keltner.
REVISIONISMO
“É na verdade uma vergonha que tenham permitido que os vocais deste álbum dominem a música, porque os caras do Elephant’s Memory nunca tocaram tão bem”, diz o início da resenha do crítico Nick Tosches, na Rolling Stones (da primeira quinzena de 1973), sobre o álbum Approximately Infinite Universe, de Yoko Ono. Nem os mais radical beatlemaníaco desafeto de Yoko Ono seria tão cáustico quanto Tosches, em relação ao segundo álbum solo da japonesa. “Se há algum outro predicado em Yoko que pode ser comparado a sua imbecilidade poética, é o quanto ela consegue tão detestável”, espicaça o crítico depois de mais uma saraivada de adjetivos depreciativos.
Passados 44 anos, o mesmo disco, assim como os outros dois agora relançados, são alvos de uma chuva de elogios da crítica. No site Pitchfork, referencial para a música contemporânea, o crítico Marc Masters louva o que no passado foi execrado, e faz uma ressalva a Approximately Infinite Universe pelas canções pop, enquanto exalta o experimentalismo hardcore de Fly, a peça de vinte longos minutos do álbum homônimo.
“Em três álbuns lançados entre 1971 e 1973, Yoko Ono subverte o formato pop e alarga sua visão que, de repente, tornou-se mais acessível e explicitamente mais feminista”, afirma a laudatória abertura da resenha da Pitchfork. Com John Lennon participando em algumas faixas, com o pouco sutil pseudônimo de Joel Nohnn, enquanto, realmente, nunca esteve tão bem a fraca Elephant’s Memory, banda nova-iorquina que acompanhou o casal durante a guerrilha urbana particular dos dois no final dos anos 60.
É risível que tanto o citado Approximately Infinite Universe e Feeling the Space, que fecha a trilogia, tenham sido malhados exatamente pelas suas qualidades. Growing Pain, a faixa que abre Feeling the Space, poderia ter sido um hit radiofônico, se a crítica da época não nutrisse tanto preconceito contra Yoko, ridicularizada quando arquitetava experiências sonoras, e questionada em sua incursões pela canção tradicional.
Feeling Space the foi o mais perto que ela chegou da facilidade pop, com sonoridade inovadora, distante do que então fazia John Lennon, até porque quando era gravado aconteceu a separação do casal (que reataria no ano seguinte). Feeling the Space é um dos discos de temática mais feminista da década de 70. Gravado quando Lennon trabalhava no álbum Mind Games, mais uma vez Yoko Ono conta com o apoio de uma superbanda, com, entre outros, o então jovem saxofonista Michael Brecker, o excepcional guitarrista David Spinozza, o baterista Jim Keltner, e um certo John O’Ocean em duas faixas.
A discografia de Yoko Ono continuará a ser reeditada pela Secretly Canadian. Ela só voltou a lançar disco solo em 1981, Season of Glass. Até Yes, I’m a Witch Too, são quase duas dezenas de álbuns, quase todos bem recebidos pela crítica e público (com as exceções já citadas). Fly, Approximately Infinite Universe, e Feeling Space comprovam que o diabo, ou a bruxa –(como ela se autodenomina, nos citados álbuns I’m a Witch (2007) e Yes, I’m a Witch Too (2016) – não era tão feia quanto pintavam. Os três discos passaram pelo teste do tempo.