“No coração de Bia meninos não tem lugar/mas nada me amofina/posso até virar menina/pra ela me namorar”, verso de Bela Bia, uma moça homossexual pela qual um rapaz hétero se apaixona. Blues para a Bia, um blues abrasileirado à maneira de Bancarrota Blues (parceria com Edu Lobo, do musical O Corsário do Rei), é uma das nove faixas de As Caravanas, o esperado e já polêmico novo álbum de Chico Buarque, que chega às lojas sexta-feira, dia 25 de agosto. Gravado, sem pressa, desde 2015, produzido por Luiz Cláudio Ramos, As Caravanas traz de volta o autor lírico, mas também bem humorado ou indignado.
As Caravanas, que dá nome ao disco, é uma crônica da luta de classe acirrada que acontece no Rio (e no resto do país), entre garotos da periferia chegando à região dos bem situados na vida, e tendo que encarar este e a polícia. O Jardim de Alah, trecho da Zona Sul carioca, entre Ipanema e Leblon, serve de gancho pra canção se estender ao refugiados que chegam à Europa e passam por vexames semelhantes:
“Diz que malocam seus facões e adagas/em sungas enormes e estufadas/e calções disformes/diz que eles têm picas enormes/e seus sacos são granadas/lá das granadas da maré”. Com um tirada de mestre pra definir o sentimento que leva a burguesia a armar barricadas contra os que descem o morro: “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia O arranjo de Luis Cláudio Ramos tem os ruídos do beatbox de Mike, do Funk Dream Team do Passinho.
As Caravanas tem citações de Caravan (Duke Ellington, 1936), e do Albert Camus, de O Estrangeiro, assim como a polêmica Tua Cantiga, cita um soneto de Shakespeare, nos versos finais, com a melodia de Cristóvão Bastos, inspirada na Polonaise em G minor, de Johann Sebastian Bach. Talvez seja o disco de Chico mais pontilhado de referências. No bolero Casualmente, composto para dona Omara Portuondo, que não chegou a grava-lo, a ode a Havana, pontuada pela paráfrase de versos do clássico Pequeña Serenata Diurna, do cubano Silvio Rodriguez.
Duas das faixas não são inéditas, A Moça dos Sonhos (com Edu Lobo, do musical Cambaio), e Dueto (de 1979), cantada com a neta, a afinadíssima Clara Buarque. No final os dois divertem-se alinhando nomes e mídias sociais (inclusive o falecido Orkut). O bom humor permeia As Caravanas. É assim no samba canção Desaforos, em que Chico incorpora um Noel Rosa, na letra de afiado desacato: ““Alguém me disse/que tu não me queres/e que até proferes desaforos pro meu lado/fico admirado por incomodar-te assim/jamais pensei/que pensasses em mim”.
CRAQUE
Chico Buarque continua em forma, e ratifica-se como um dos grandes, e dos últimos, autores de canções (no sentido clássico do termo), com o requinte e a graça do mais refinado dessa estirpe em extinção, o americano Cole Porter. Até quando adentra o gramado, em Jogo de Bola, mais um samba dedicado ao que já foi chamado de viril esporte bretão. Nele dá lençol, faz firulas, e chuta de trivela, na melodia recheada de truques harmônicos, em que reverencia a lenda húngara Ferenc Puskás: ““Viva a galera, viva às maria-chuteira/cujos corações incandescias/outrora, quando em priscas eras/Um Puskás eras/a fera das feras na esfera”. Marcou um gol de placa nas rimas.
Surpresa, pelo menos para que não o conhecia (ou seja, quase todo mundo que não é da família Buarque/Brown), é o neto Chico Brown, autor da melodia de Massarandupió, bela e harmonicamente sofisticada, como costuma fazer o avô, com quem amarra a primeira, e feliz, parceria. No mais Chico Buarque não inventa, nem se reinventa. Continua o craque de sempre da canção, e super bem acompanhado por um time impecável de músicos. O disco tem selo da Biscoito Fino, um biscoito finíssimo.