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Gilberto Gil ganha box com concertos dos anos 70

Discos registram o baiano na época do desbunde

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 18/10/2017 às 11:04
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Discos registram o baiano na época do desbunde - FOTO: foto: divulgação
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 No dia 3 de março de 1972, um princípio de incêndio na Usina 1 de Paulo Afonso, cujos geradores foram imediatamente desligados, deixou 1.300 cidades do Nordeste às escuras durante duas horas. O Recife não foi exceção. No Teatro do Parque, Gilberto Gil abria sua primeira turnê nacional, também a estreia dele no Brasil, depois de voltar, no dia 14 de janeiro, da temporada forçada em Londres.

 Por ironia, faltou energia quando Gil cantava Crazy Pop Rock, dos versos “From the city runs electricity in my brains” (“da cidade vem a eletricidade ao meu cérebro”). O cantor pegou um violão, foi aos jardins do Parque e improvisou um concerto acústico, com a plateia vibrando. No meio dela estavam os amigos de Gilberto Gil que vieram de Salvador ou do Rio assistir a estreia, entre outros, Gal Costa e Macalé. Os dois shows seguintes aconteceram sem incidentes.

 Assim como Caetano Veloso, Gil estava sendo visto como uma espécie de guru dos desbundados. Aliás, os dois baianos voltaram ao país em pleno Verão do Desbunde. Queriam saber dele opiniões sobre tudo, desejavam que participasse de debates, que fosse simpático a reivindicações. Mesmo ciente de que ainda era visado pelos órgãos de repressão do regime militar, Gil atendia, na medida possível.

 Fez por exemplo um concerto na USP para estudantes que pretendiam que o governo prestasse conta pela vida do universitário Alexandre Vanucchi Leme, preso, torturado e morto. Uma temeridade, pois Gil tinha sofrido uma recente pressão de agentes da polícia do regime, que desligaram os microfones, enquanto ele cantava Cálice, com Chico Buarque, no Phono 73, evento promovido pela gravadora Phonogram. O áudio desse show histórico, que está disponibilizado no Youtube desde 2012, é finalmente lançado oficialmente, na caixa Gilberto Gil Anos 70, ao Vivo, com selo da Discobertas, produzida pelo especialista em Gil, o carioca Marcelo Fróes, com supervisão de Bem Gil, filho do cantor.

 São três CDs duplos, Back in Bahia (1972), Umeboshi (1973) e o citado Ao Vivo na USP (1973). A caixa preenche uma lacuna na extensa e preciosa obra de Gilberto Gil, trazendo à tona sua fase contracultural, boa parte dela apreendida na sua estadia de três anos em Londres, efervescente, capital udigrúdi do mundo. Shows de Gil nesta época ultrapassavam facilmente três horas de duração, com muito improviso, tanto jazzístico, quanto inspirado nos cantadores nordestinos.

 Antes de voltar aos palcos no Recife, Gilberto Gil, com Capinam, revisitou o interior de Pernambuco e de outros Estados, em busca das raízes, de que ele se desvinculara enquanto estava em Londres. Da primeira vez, quando fazia uma temporada no Recife, no Teatro Popular do Nordeste, conhecer manifestações populares, como as bandas de pífanos, maracatus rurais, rodas de ciranda, o levou a lucubrações que dariam no tropicalismo.

 Desta vez, ele se propôs um amálgama do moderno e o primitivo, Brand New Dream (canção do disco homônimo que estava fazendo em Londres, quando veio para o Brasil) e Sai do Sereno, canção de domínio público adaptada pelo caruaruense Onildo Almeida. No Back in Bahia, Sai do Sereno ganha uma interpretação de 10 minutos. Mas fica bem longe da viajada versão de Aquele Abraço, com 18m48s, agora com influência do rock progressivo, Bruce Henry num solo de baixo, com Lanny Gordin correndo atrás em  em solos curtos de guitarra, em alguns deles num pinicado de violeiro nordestino como em Essa é pra tocar no rádio, do terceiro álbum, Umeboshi.

As canções deste álbum foram registradas no Teatro João Caetano, no Rio, em 12 de março de 1972. Gil se apresentou com uma banda formada por Tutty Moreno (bateria), Bruce Henry (baixo), Lanny Gordin (guitarra), Perna Fróes (teclados).

MOMENTOS

São três momentos, cada um desses álbuns é um resultado de suas circunstâncias, mas se fosse necessário escolher o melhor da trinca, seria Umeboshi (nota: um tipo de ameixa japonesa, na época Gilberto Gil fazia macrobiótica), também título de um disco que ele chegou a gravar em estúdio, mas que ficou nos arquivos, até 1998, quando foi lançado com o título de Cidade de Salvador, na caixa Ensaio Geral, que abrange toda obra de Gilberto na Phillips/Phonogram.

Umeboshi é registro de um dos shows da temporada que Gil realizou em abril de 1973 no pequeno Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, com a banda reformada: Tutty Moreno (bateria), Rubão Sabino (baixo), Aloisio Milanez (teclados) e Chiquinho Azevedo (percussão). Gil estava numa fase ótima. Tocava Brasil afora com Só Quero um Xodó, de Dominguinhos e Anastácia, um dos maiores sucesso populares de sua carreira. Por sua vez, o álbum Expresso 2222 seria, até então, seu LP mais bem sucedido comercialmente (com ele, Gil inauguraria o primeiro estúdio de 16 canais do Brasil). Toda gravação do disco foi documentada numa longa matéria da edição nacional do jornal Rolling Stone (o porta-voz dos desbundados).

Umeboshi ao Vivo tem Gil menos inquieto, mais zen, mesmo quando canta Minha Nega na Janela (de Germano Mathias), samba politicamente incorreto, impensável de ser cantado em público hoje e não gerar protestos. Mas o samba está dentro do contexto do show, em que Gil molda um novo samba, com bastante sincopado, de harmonias complexas, com improvisos, como faz em Tradição ou Meio Campo, composta para o jogador Afonsinho, ídolo politizado Botafogo. Gil até lembra que Eu Só Quero um Xodó é lado B do compacto que tem Meio de Campo no lado A. Estreia o samba canção Preciso Aprender a Só Ser, composto para Maria Bethânia gravar. Um show redondo, com tempo reduzido, pelo menos em relação aos que fazia na época. Mesmo assim dura duas horas e meia. Só quinze minutos tem um meddley desbundado, com Edith Cooper (gravada por Edy Star, no álbum Sweet Edy...), Back in Bahia e Procissão.

Nota-se, pelo repertório dos shows, que Gilberto Gil arquivou o tropicalismo. Nestes discos ouve-se um artista renovado não apenas no repertório, como igualmente na forma de cantar, e nas letras. A única canção da Tropicália que canta nestes shows é Domingo no Parque (no show da USP). As performances são bastante influenciada pelos shows que viu em Londres, e tecnicamente, a música é muito mais ousada do que a que fez no movimento. Da breve fase tropicalista apenas Questão de Ordem se encaixaria no novo repertório sem destoar.

 

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