ENTREVISTA

Don L leva o rap cinematográfico de 'Aïnouz' ao palco do Rec-Beat 2018

O rapper cearense, que subirá ao palco do Rec-beat neste domingo (11), fala um pouco da sua vida e obra, sobre os seus ídolos e dos problemas que afetam a sociedade.

JC Online
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Publicado em 10/02/2018 às 9:00
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O rapper cearense, que subirá ao palco do Rec-beat neste domingo (11), fala um pouco da sua vida e obra, sobre os seus ídolos e dos problemas que afetam a sociedade. - FOTO: Foto: Divulgação
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Um dos maiores nomes do hip hop brasileiro, o cearense radicado em São Paulo Don L apresentará neste domingo (11), pela primeira vez no Recife, o show do autobiográfico Repertório para Aïnouz, Vol. 3 (2017), disco que inicia a trilogia reversa sobre sua trajetória no mundo da música. Em entrevista ao Jornal do Commercio, o rapper, que subirá ao palco do Rec-beat, no Cais da Alfândega, às 23h10, fala um pouco da sua vida e obra, sobre os seus ídolos e dos problemas que afetam a sociedade, como o bom niilista que é. 

Confira:

JORNAL DO COMMERCIO – Don, o que você pretende levar para o palco do Rec-Beat em termos de repertório? É possível que role uma parceria entre você e Diomedes Chinaski?
DON L - Totalmente possível, espero muito que role, mas ainda vamos combinar. Então, vai ser um show do disco Roteiro pra Aïnouz: Vol. 3 (2017) com algumas músicas da mixtape antiga (Caro Vapor / Vida e Veneno de Don L), de 2013. Vai rolar também uma participação de Terra Preta, parceiro que sempre cola comigo nos shows.

JC – O que significa para você esse primeiro show em Pernambuco, sobretudo num festival gratuito, aberto ao público e tão relevante para a nova cena musical como o Rec-beat?
DON L – Então, esse não é o meu primeiro show em Pernambuco. Eu já tinha me apresentado aí no cenário underground, no Arvoredo (Centro Cultural). Mas, sim, é o meu primeiro show num grande festival. Eu fiquei felizão pelo convite. E poder estrear numa cidade como Recife, que além de ser calorosa é um lugar onde sei que tenho muito público, muita gente esperando por esse show do disco que eu ainda não tinha feito... É muito foda, cara. Ainda mais no Carnaval. Tenho certeza que vai ser muito emocionante para mim e para muita gente que vai.

JC – O título do teu disco é claramente uma referência ao cineasta da tua terra, Karim Aïnouz. Na música Se Num For Demais você cita o Tarantino, enquanto em Aquela Fé você canta assim: “uma frase muda o fim do filme”. Então, queria saber, primeiramente, de que forma o cinema influencia a tua vida e obra. E, em segundo lugar, o que te levou a intitular o álbum dessa forma?
DON L – O rap é um estilo de música que já é cinematográfico por natureza. Quando eu era moleque e não sabia nada de inglês, escutava rap gringo, entendia uma palavra ou outra e ficava criando toda uma atmosfera. Quando eu ouvia Racionais, principalmente a música Tô Ouvindo Alguém Me Chamar, eu via as imagens. Aquilo é um filme.

Em diversos momentos da minha vida chegaram pessoas, críticos musicais para me dizer que meu trabalho era visual. E quando eu escuto, eu vejo as cenas. Isso sempre esteve na minha cabeça. Inclusive, me dificulta a fazer videoclipes. Acaba saindo muito caro para fazer do jeito que você quer e também estraga um pouco a imaginação. Às vezes eu me decepciono com clipes porque tenho uma impressão visual na minha cabeça e de repente aquilo é destruído.

Se você fechar os olhos e escutar o rap, você vai ver um filme. Por isso pensei em fazer esse lance (o disco) como se fosse um roteiro, em três partes, saca? E também pela história (autobiográfica) que estou contando.

JC – E de onde veio a ideia de fazer essa trilogia reversa, do primeiro disco ser o volume 3? De começar a contar sua história de trás pra frente? Isso teria algo a ver também com esses roteiros não-lineares do cinema?
DON L – No meu caso foi porque cheguei em São Paulo em 2013 e já sou relativamente conhecido, todavia essas pessoas às vezes desconhecem minha trajetória. Então, decidi lançar um disco que fala do meu momento atual, mas que prepara o terreno para que eu possa contar a minha história, de como cheguei até aqui. E o jeito mais interessante que encontrei foi de trás pra frente, o que é até meio comum no cinema.

JC – Você fala nas suas músicas sobre uma espécie de ruína em que o rap brasileiro se encontra quando se trata de marketing, de promoção de vendas. Entretanto, os espaços estão cada vez mais abertos para o estilo musical. Neste ano, em Olinda, tivemos a 1ª edição do polo hip hop lá no meio da folia. Como você enxerga esse embate entre o crescimento do espaço e a decadência do showbusiness, digamos assim?
DON L – O business não está em decadência, está em ascensão. O que critico em alguns momentos é a mentalidade da música brasileira. Da arte, na verdade. Faço críticas não apontando dedos, mas propondo uma reflexão, uma autocrítica. Será que a gente não vai superar 1922 (a semana de arte moderna)? Fui ler um pouco sobre isso e é basicamente o que está rolando agora. As pessoas estão buscando essa coisa de precisar afirmar uma identidade. Acho que já passou o tempo disso, é desnecessário, porque nós já somos essa mistura maluca.

A gente tem uma indústria (fonográfica) muito grande, acho que só é comparável com os EUA. Mas nossa situação de incentivo é precária, a gente não tem mecenas, um investimento em arte como deveria. Faltam pessoas com grandes ambições querendo desenvolver e fazer coisas para durar, para ficar para daqui a 20 anos, saca? Querendo mudar a realidade, dialogar com o que está acontecendo, aproveitar a discussão do momento. É isso que critico e sinto falta, mas também utilizo todas as minhas forças para interferir de forma positiva e ajudar na mudança.

JC – Suas canções também abordam bastante temáticas que envolvem a tecnologia e seu impacto nos hábitos das pessoas, tal qual nos trechos: ‘amigos viraram números’, ‘comentarista de Facebook’ e ‘isso não é Netflix’. A pergunta é: até que ponto você acha que podemos chegar?
DON L – O ponto está aí explícito em Black Mirror (série da Netflix). Acho que explora bem isso. Na verdade, já chegamos nesse ponto. Black Mirror é agora. Estamos vivendo num momento de trevas. As coisas mudaram muito rápido e de forma desordenada, como acontece no capitalismo, essa ilusão de que só precisamos fazer as coisas e tudo vai se autorregular naturalmente, saca? E quando vemos, de repente, estamos enfrentando um problema que nós criamos achando que estávamos criando uma solução. A tecnologia tem muito disso. Inclusive, estou até um pouco afastado do Facebook, dessa cultura da lacração, das pessoas linchando as outras. É um bagulho sinistro e as pessoas não veem as consequências das suas ações muitas vezes.

Em contraponto, muitas discussões importantes estão acontecendo. A rede também tem um lado positivo, o que é louco, né? Se não houvesse seria muito mais fácil de se evitar. Por exemplo, se uma pessoa foi racista, se um cara foi um machista escroto, um estuprador… Acho que, sim, tem que ser exposto de alguma forma. Mas a partir disso as coisas vão ficando maiores do que imaginamos, virando uma bola de neve. Não sabemos mais o que é real e o que não é porque as pessoas estão inventando notícias. Podemos muito facilmente ser manipulados pela tecnologia.

Você cola numa periferia, e tem um moleque que passa o dia no trabalho, chega em casa à noite para acessar o Facebook, vê duas ou três notícias e não tem tempo para se aprofundar naqueles assuntos. Isso é perigoso. Acho que vamos viver nesse caos ainda por algum tempo e cabe sobretudo a vocês, jornalistas, voltarem a ser os grandes canais de confiabilidade.

JC – Quais são seus projetos para 2018? Já há alguma previsão de lançamento para os volumes 2 e 3 da sua trilogia musical?
DON L – Já tenho muita coisa pronta. No mundo ideal eu faria o volume 2 ainda no primeiro semestre, mas como já tenho muita coisa, entre shows e videoclipes que queremos fazer, não sei dizer exatamente quando o próximo disco será lançado. Por mim, lanço os dois ainda esse ano, sei nem se minha equipe concorda com isso (risos). Devo lançar também algum novo verso livre (música mais free style, sem estrutura de refrão), como o que fiz no réveillon.

JC – Para finalizar, uma curiosidade: Kanye West, Kendrick Lamar ou J. Cole?
DON L – Putz, eu sou muito fã dos três caras. Acho que eles salvaram o planeta, sabe? São super-heróis. O que seria da cena hip hop sem eles? Mas, respondendo à sua pergunta, eu acho que Kendrick é o candidato mais precoce a melhor rapper de todos os tempos tratando da questão lírica, de propor sempre o novo.

Já Kanye é aquele cara da ultra arte, que está sempre elevando o nível de arte a uns cinco degraus, distribuindo carreiras para as pessoas. Ele está sempre dizendo algo do tipo “no disco passado fiz isso e agora 15 rappers vão passar o resto da vida tentando fazer o que fiz” e aí ele vai tentar fazer outro bagulho. Ele tem a carreira mais perfeita, mais propositiva da música do meu tempo.

E o J. Cole… É a essência do hip hop. É um cara que realmente está preocupado com que está dizendo, com a mensagem que quer passar. Ele vem da escola do Tupac, que dialoga com tudo isso. Eu sou muito fã dessa cultura, ver esses três caras me emociona totalmente.

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