Lançado por Carmem Miranda, em 1934, o samba Minha embaixada chegou (Assis Valente) abre o show Caravanas, que Chico Buarque, apresenta até domingo, no Teatro Guararapes. A música foi cantada em dueto por Maria Bethânia e Nara Leão, no filme Quando o carnaval chegar (1972), de Cacá Diegues, que tecia sutis alusões à conjuntura política da época. Agora é como um abre-alas com que Chico avisa, aos que criticam ou apoiam suas posições políticas, que está botando seu bloco na rua.
Não por acaso, a canção seguinte é o samba Mambembe, da mesma trilha sonora: “No palco, na praça/ no circo, num banco de jardim/correndo no escuro, pichado no muro/você vai saber de mim”.
Chico recorre mais uma vez às entrelinhas na terceira música, acentuando o “na barriga da miséria nasci brasileiro”, verso de Partido alto, que canta repetindo as sílabas finais, como se fosse um eco: “Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio/pele e osso simplesmente, quase sem recheio/mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio/eu dou porrada à 3x4 e nem me despenteio/porque eu já tô de saco cheio”. O primeiro bloco do show fecha com Cuba. Ele canta Iolanda, parceria com o cubano Pablo Milanés, e Casualmente, bolero, com maracas e bongôs, do novo disco (com Jorge Hélder), que cita versos de uma canção de outro autor cubano, Silvio Rodrigues.
O repertório é um primor de intertextos. O lirismo de A moça do sonho (Edu Lobo) com Retrato em banco e preto (parceria com Tom Jobim), se contrapõe às vicissitudes dos relacionamentos, pessoais, e amorosos, que une Desaforos (do novo disco), a Injuriado (de As cidades, 1998). Mais adiante, A volta do Malandro e Homenagem ao malandro. Em que versos como “Malandro candidato a malandro federal/que nunca se dá mal” ganha tons mais fortes de atualidade.
Um roteiro redondo, apresentado com um cenário simples e elegante, um toque de classe na iluminação (de Maneco Kinderé), sobre os móbiles (de Hélio Eichbauer). Mais com uma banda que é praticamente a mesma com que Chico Buarque fez a turnê de Paratodos, 25 anos atrás, Luiz Claudio Ramos (guitarra e violão), João Rebouças (piano), Bia Paes Leme (teclados e vocais), Chico Batera (percussão), Jorge Helder (contrabaixo), Marcelo Bernardes (flauta e sopros) e Jurim Moreira (bateria). De novato no grupo apenas o baterista, que entrou em lugar de Wilson das Neves, (falecido em agosto de 2017). O espetáculo é dedicado a Wilson das Neves, ao qual Chico presta uma homenagem ao cantar Grande hotel (parceria com das Neves), usando um chapéu branco, registrada do homenageado, e ensaiando uns passos de samba.
As canções novas, poucas, apenas sete, estão distribuídas pelo repertório de 31 músicas (incluindo as três do bis), entrelaçadas com as mais antigas, formando blocos distintos. Um deles, por exemplo, mais lírico, com a belíssima Dueto, no disco cantada com a neta Clara Buarque, no show com a tecladista Bia Paes Leme. Mais à frente um momento jazz/blues, com Blues pra Bia e A história de Lilly Brown. Gota d’água é linkada com Caravanas, seguida de Estação derradeira (ambas cantam o Rio de Janeiro de tempos diferentes). Caravanas, no entanto, de letra forte e incisiva, funciona melhor no disco.
MANIFESTAÇÕES
O show continua fluindo sem alteração de rota. Nem quando a plateia se manifesta. No início, com um isolado “Lula livre”, gritado sem encontrar ecos solidários do público. Uma faixa com um “Lula livre” foi estendida, no final dos show, camisas. Já no bis, irrompeu o coro, que se espalhou pelo público (que lotou o teatro), de “olé, olé, olé, olá/lula, lula”, exatamente quando Chico fez uma emblemática interpretação de Geni e o Zeppelin, com o cenário, não por acaso, em tons vermelhos.
Chico dá umas corridinhas pelo palco, aperta mãos de fãs, acena, as luzes se apagam. O público insiste por mais uma. O Show parece que chegou mesmo ao fim. Mas ele e a banda voltam e fecham a noite com Futuros amantes (de Paratodos). O show pode ter recebido alguns retoques nas primeiras apresentações, agora, na reta final, se aproxima da perfeição.