Entrevista

Silvério Pessoa: ''Não existe mais festa de São João''

Cantor defende ensino da música nordestina nas escolas

JOSÉ TELES
Cadastrado por
JOSÉ TELES
Publicado em 11/06/2018 às 8:46
Foto: Casa de Farinha/divulgação
LIVE Silvério Pessoa é um dos homenageados do São João do Recife 2020 - FOTO: Foto: Casa de Farinha/divulgação
Leitura:

Silvério Pessoa viaja nesta segunda-feira para Lisboa. De lá voa até o Algarve para participar do festival Pé na Terra. Volta a tempo de pegar a temporada junina, ou joanina como ele chama, com shows pelo interior do estado. Nos últimos anos, o artista carpinense esteve pouco presente na mídia, mas não ausente da música. Investiu numa carreira acadêmica, com doutorado sobre música e religiosidade, e passou a dar aulas-shows. Este retorno a Portugal sinaliza para uma retomada das turnês internacionais. Ao mesmo tempo ele tem engatilhado mais um disco autoral. Dias antes de viajar Silvério Pessoa falou com o JC, sobre a carreira, sobre o forró e o São João. O forró resiste, mas o São João para ele não existe mais.

JORNAL DO COMMERCIO – Este show que você está levando pra Portugal, qual o formato e o repertório?

 SILVÉRIO PESSOA – Faz parte de um projeto do próprio festival que é interativo. Entre músicos brasileiros e portugueses, ou de culturas diferentes em processo de interação, um festival que une dança, música e práticas de saúde, espiritualidade. Oficina de instrumentos, chamam de festival etnomusicólogo, práticas ao ar livre de exercício, de yoga, estas coisas todas. Tem toda uma tradição no Algarve.

 JC – Você viaja com seus músicos?

 SILVÉRIO – Não estou levando banda, vou chegar dias antes, pra ensaiar com uma banda portuguesa, já mandei o repertório, o roteiro do meu show conforme solicitação do próprio festival é um formato autoral e de influências. Faço uma primeira parte plugada com os músicos portugueses, e no segundo reverenciando a obra de Jackson do Pandeiro e Jacinto Silva.

 JC – Até uns poucos anos atrás, você era um dos músicos pernambucanos que mais fazia a Europa, depois deu uma arrefecida. E não apenas nas turnês. Saiu um pouco de cena. Como ou por que isto aconteceu?

 SILVÉRIO – Eu realizei 12 anos de turnê na Europa, um dos resultados das viagens foi uma dissertação de mestrado, que virou livro por uma editora de São Paulo, a Fonte Editorial, um estudo comparativo entre a religiosidade popular do sul da França e a cultura occitana. Estou com quatro discos em catálogo na Europa, o Bate o Mancá, Cabeça Elétrica Coração Acústico, o Forroccitania, com o La Talvera, grupo do Sul da Franca, e o Collectitude, com doze bandas francesas.

 JC – Por que diminuiu a quantidade de turnês?

 SILVÉRIO – O mestrado coincidiu com estes 12 anos de turnê, então a França entrou numa recessão grande na área de cultura, principalmente no governo Sarkozy. Eu não sou o único, não vou citar nomes, muitos artistas brasileiros que frequentavam os mesmos circuitos que eu também pararam de viajar. Houve um recuo diante desta questão de política cultural na Europa. Eu migrei para o doutorado, e tinha que ter uma presença no Brasil, minha tese é sobre o mercado da música religiosa brasileira, tinha que fazer pesquisa de campo no Brasil. Eu sou bolsista, não posso me ausentar por mais de 30, 60 dias. Investi também num outro mercado que para mim foi muito expansivo, as aulas-shows, que cresceram muito de 3, 4 anos para cá. E ainda gravei o Cabeça Feita, com música de Jackson do Pandeiro. Esta ida a Portugal marca, pelo menos, uma retomada da minha presença no mercado da Europa, nos festivais, mesmo assim sem tempo exclusivo, porque defendo minha tese de doutorado em fevereiro. Só não houve uma saída de cena. A não ser dos palcos da Europa, mas nunca trabalhei tanto em música no Brasil.

 JC – Quer dizer que você encontrou uma via fora dos caminhos tradicionais?

SILVÉRIO – O perfil do artista músico no Brasil adquiriu outro perfil. Ele é um empresário, um investidor, não é só um intuitivo, o artista agora é plural. Hoje eu sou um artista que levo a música comigo para as aula-sshows, sigo a mesma linha do professor Ariano (Suassuna), claro sem querer me comparar. Ao mesmo tempo tive um grande investimento na carreira acadêmica, todos os meus projetos contemplam a música, por isso tive que permanecer no Brasil. O mercado europeu para a música brasileira mudou, que culminou com o ano do Brasil na França, mas também chegou lá muita coisa caricaturada, que acabou congestionando e saturando. Acho que isto é uma questão de tempo, a gente deve fazer novos retornos, eu estou com vários convites, inclusive para gravar, isto vai depender da minha defesa de tese em 2019.

SÃO JOÃO

 JC – Este ano os forrozeiros ditos pé de serra começaram a discutir a posição deles nos festejos juninos. Chegaram a gravar um disco coletivo. Mas as prefeituras continuam importando sertanejos, até DJ, feito Alok para o São João.

SILVÉRIO – No ano passado já conversamos sobre isto, num artigo seu sobre a descaracterização do real sentido da festa junina. Falei na época sobre a diluição da temática junina. Porque o real significado da festa de São João é a religiosidade popular, indiscutivelmente. O forró é a trilha sonora, mas o real significado da festa joanina são os três santos católicos, São João, Santo Antônio e São Pedro. E neste contexto a música que ladeou toda esta tradição é o forró, Luiz Gonzaga e tal, junto a isto tem toda uma cultura. Não é só uma festa, é uma festa inserida numa cultura. A roupa, a culinária, porque tem a ver com a plantação e a colheita do milho, tem a literatura própria, tem a ver com sotaque próprio, tem a ver com uma questão ecológica. A área urbana adotou a festa, mas a festa São João é do interior.

JC – Mesmo assim, o São João sobreviveu?

SILVÉRIO – Eu acho que a festa de São João acabou! Não existe mais a festa do São João. Existe um espetáculo público patrocinado por empresas, com interesses de vendas do seu produto. A prefeituras adotaram o mesmo formato no Carnaval e no São João. Porque existe toda uma situação midiática que lota as praças, que são os artistas importados, que são divulgados pela televisão e pelas rádios. Os artistas independentes que adotam outra forma de promoção, streaming, redes sociais, não conseguem agregar público para lotar estas praças. Sabe-se também que há um objetivo político, de urna. O pão e circo.

 JC – Como você se insere neste contexto?

 SILVÉRIO – Como estou inserido nisto? Não estou inserido. Criei um circuito que não depende mais disto. Eu não procuro prefeitura, nenhum órgão público, para pedir shows. Eu apresento um trabalho que mesmo sazonal tem uma representatividade, tenho uma obra que dá hereditariedade as dois grandes gênios da música nordestina, Jacinto Silva e Jackson do Pandeiro, com isto canto Luiz Gonzaga, Elino Julião, Maciel Melo, Rosil Cavalcanti, Edgar Ferreira, Rui de Moraes e Silva.

 JC – Como está sua agenda neste período ?

 SILVÉRIO – Eu não dependo da festa para poder trabalhar. Eu estou fazendo o palco alternativo de Caruaru, no palco Azulão, numa noite contemplando uma noite joanina, cantando o meu repertório, Jacinto Silva e Jackson do Pandeiro, vou estar em no dia de São João em Arcoverde, depois vou ao Fórum do Forró em Aracaju. Vou cantar em Portugal. Então estou muito bem, sendo verdadeiro naquilo que proponho, multiplicando a história do meu povo, sem necessariamente ter que reescrever, me ressignificar. Sou um artista que consegue dar uma expansão a sua atividade artística para outras atividades. Mas isto que existe aí não é São João, é outra festa que usa o rótulo de São João. Mas não é São João, não existe mais isso. Quer descobrir a festa junina? Procure um bairro humilde, onde tem fogueira acesa, onde tem uma avó fazendo a pamonha, ou no interior, num sitiozinho mais distante.

 JC – Você acha que se, por exemplo, fosse incluída a matéria forró nas escolas, a tradição seria preservada?

 SILVÉRIO – Veja só, faz cinco anos que lancei uma monografia na Fafire (Faculdade Frassinetti do Recife) na pós-graduação de psicopedagogia, “O forró como cultura popular – da celebração do povo aos currículos. A minha proposta é que se a educação pública contemplar os traços culturais dos filhos de migrantes ou imigrantes que ingressam na escola publica, eles terão um nível de aprendizado melhor por reconhecerem sua cultura no currículo escolar. Neste caso o forró deixaria de ser tema transversal e passaria a integrar uma disciplina de cultura popular nos currículos escolares, principalmente no fundamental. Do jeito que tá aí, com o fim da festa junina, é o grande papel da escola pública, porque a particular não está interessada nisso, o negócio dela é só no Enem. Caberia a escola pública, porque alcança este povo humilde, filho desta cultura, que veio do interior pra morar no Recife. A educação tem um papel fundamental nisso, como tem em relação ao frevo também.

JC – Depois de cumprir esta agenda, além do trabalho acadêmico, o que você pretende fazer no segundo semestre?

 SILVÉRIO – Meu objetivo agora é disco autoral. Mas este projeto, só se for subsidiado, estou com um projeto no Sul da França. Tentei com o Natura e não foi aprovado. Quero gravar com Jr. Tostoi e com Kassim, no Rio. Será um disco de parcerias, com China, Bruna Karam, Tibério Azul, Clayton Barros (do Cordel do Fogo Encantado), Fillipe Catto, um álbum diversificado, não é um disco de música tradicional, não é forró, mas continuarei a caminhar com a musica tradicional, tenho uma expectativa dentro deste universo, mas com show do que com produtos. Quero um disco com recursos conquistados. Nada de investimento pessoais, como já fiz em outros. Estou aguardando o resultado da lei de incentivo, para gravar este disco que foi pré-produzido na França. Então só entrar em estúdio para regravar alguns instrumentos. Ele tem o título provisório de Sangue de Amor. Sim, ainda tentei gravar um disco com coco tradicionais de terreiro em estúdio, ao vivo, com um grupo de coco de terreiro tradicional. Pensei em gravar um disco com a obra de Ary Lobo. Mas tenho que correr atrás de recursos, com investimento pessoal não tem retorno, e acaba não valendo a pena.

Últimas notícias