Desde que Getúlio Vargas parou de botar a polícia pra descer o sarrafo nos partideiros e escolheu o samba como elemento de unificação pátria lá nos velhos tempos da Rádio Nacional, os batuques e tamborins vêm cumprindo, com louvor, sua trajetória como uma das poucas e verdadeiras unanimidades nacionais. Não foi diferente na noite da última quarta (25), quando, mais uma vez, o principal palco do Festival de Inverno de Garanhuns foi ocupado por diletos militantes do gênero. Para uma praça lotada, o carioca Diogo Nogueira confirmou seu status de galã preferencial do samba brasuca - embora o grande show da noite, para um público consideravelmente menor, tenha acontecido poucas horas antes e a poucos metros dali.
Herdeiro glorioso do grande João Nogueira, Diogo tem o samba como patrimônio. Não pode ser considerado um ponto de destaque na linha evolutiva do gênero. Mas, com boa dose de malandragem calculada no cantar, toca com competência o patrimônio herdado. Cheio de maneios, com uma super banda de metais e sopros de nove músicos, ele atua como o crooner do samba que é: anima o salão, emenda um clássico no outro; adapta hits da MPB, como a Descobridor dos Sete Mares, de Tim Maia, ao ritmo. E, carismático, joga bem com a plateia. Ao final do show, ainda fez um bom coro seguir seu grito por "Lula Livre!".
PRETA
Antes dele, com letras imaginosas e bem humoradas, o carioca radicado em Pernambuco Paulo Perdigão mostrou com todas as letras que a prosódia pernambucana rende bom partido alto. Mas, sim, o grande acontecimento da noite havia se dado horas antes, no Palco Pop, instalado por trás do Parque Euclides Dourado. Seu nome: Gabi da Pele Preta.
Anotem todas as letras desse nome. Nascida em Caruaru, menos de 30 anos de idade, de uma beleza que, sim, deveria gerar jurisprudência, Gabi da Pele Preta começou a cantar no coral da igreja protestante frequentada pela família. Já não canta para fins unicamente religiosos. Mas os anos de igreja só fizeram bem à cantora. Como as grandes do soul e do jazz talhadas também em templos, Gabi tem um raro e verdadeiro fervor quando solta a voz. Seu canto é sua fé.
A menina arrasa: magnética em cada gesto, com uma sonoridade de flertes com ritmos negros e um sotaque predominante e elegantemente rock n roll garantido pelos arranjos do parceiro Alexandre Revoredo, a jovem diva usa a potência da voz claríssima pra elevar uma poética não menos afiada. Canta as diásporas negras cotidianas, o esmagamento de minorias, o sexismo opressor. "Não queremos apenas o papel de musas, mas sermos donas de nossos próprios discursos", disparou ela, para reclamar que mesmo a música tem sido um ambiente privilegiadamente machista e porque, além de composições de consagrados como Chico César, reuniu no repertório um elenco poderoso de novas poetas e compositoras mulheres: Ezther Liu, Mary Lemos (também produtora), Fernanda Limão, Joana Terra...
Os números em que Gabi dividia a cena com a poetisa Stephanie Metódio; uma no canto, outra na declamação, suspendiam o tempo ao redor. As dicções claras, femininas e assertivas sobre as violências cotidianas, faziam o público prender a respiração como se estivesse num teatro. Se o FIG tivesse sido encerrado ontem, teria cumprido já uma grande tabela: consagrar o talento da jovem diva. Com esse show, Gabi da Pele Preta está pronta para qualquer palco do País.
Logo depois, a cantora ainda fez uma participação especial num show que, improvisado, já se configura como um dos grandes momentos desse festival. Como Theo Ruiz e Estrela Leminski não puderam ser contratados de última hora por problemas na documentação, a produtora Mary Lemos reuniu os músicos e poetas disponíveis em Garanhuns e, no improviso e sem cachê, reuniu um elenco primoroso dessa nova música pernambucana para um show batizado de Ocupação na Rural, no pólo organizado por Roger de Renor.
Sob o respaldo do violão do onipresente de Juliano Holanda, nomes como Flaira Ferro, Igor de Carvalho, Mayra Clara, Revoredo, Publius, Tonfil e as poetas Stephanie Metodio, Ezther Liu, Dayane Rocha e Dani Galdino intercalaram canções e poemas num recorte aguçado dessa nova cena que se confirma com recortes claros de uma nova geração musical. Cada intérprete era saudado pelo público como se num festival dentro do festival. "Existimos. Isso é apenas um recorte do que se faz hoje em Pernambuco", disse Holanda e, antecipando o show da Nova Cena Pernambucana que será apresentando sábado, na última noite do FIG, e dedicando o espetáculo à atriz trans Renata de Carvalho, cujo espetáculo O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi retirado da programação oficial do FIG por pressão do prefeito de Garanhuns. "Não seja uma vírgula nessa história, não deixe um prefeito censurar uma peça. o próximo censurado pode ser você", disparou.