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Gilberto Gil num disco de reverências e reflexões

Álbum tem repertório inédito e inspirado em fontes inusitadas

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 10/09/2018 às 13:32
foto: Gerard Giaume/Divulgação
Álbum tem repertório inédito e inspirado em fontes inusitadas - FOTO: foto: Gerard Giaume/Divulgação
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Em seu novo disco, Ok, Ok, Ok (Biscoito Fino/Gegê Produções), Gilberto Gil faz lembrar o personagem Candide, de Voltaire. No final do livro (escrito em 1759), o otimista Dr.Pangloss pondera que se Candide não tivesse sido expulso de um castelo pelo amor por uma donzela, não tivesse quase morrido pela inquisição, não tivesse ido para a América, não tivesse ferido um barão, não tivesse perdido os rebanhos de carneiros que possuía em El Dorado, não estaria desfrutando, em sua casa, de uma garrafa de cidra com pistaches. Ao que Candide, ressabiado das aventuras e desventuras, diz:”Vamos cultivar nosso jardim”. Gil faz seu álbum mais confessional e intimista. Depois de contribuir de ser um dos artistas que alicerçaram o que se convencionou chamar de MPB, de deflagrar o tropicalismo, amargar três anos de exílio, de incrementar a contracultura no Brasil, de participar na prática da política, Aos 76 anos, ele agora cuida do seu jardim.

Em seu primeiro disco de inéditas, desde Fé na festa, de 2010, Gil canta temas pouco comuns à música popular, como é o caso de Quatro pedacinhos: “Ela mandou arrancar quatro pedacinhos do meu coração/depois mandou examinar os quatro pedacinhos/um para saber se as pequeninas são assassinas e podem matar/um para saber se estou curado com os remédios que ela me deu/um para saber se estou errado por ter juntado o meu destino ao seu”, composta inspirada na médica da equipe que cuidou do cantor, que passou, no ano passado, por sérios problemas de saúde. outro médico também é lembrado no disco, o cardiologista Roberto Kalil: “Gente inteligente no Brasil/dr.Roberto Kalil/ ... é que o cabra acredita em milagre/com uma gota de vinagre/já curou mais de cem”.

Não que assuntos assim inusitados seja novidade na obra de Gilberto Gil, que já cantou em Pílula de alho, que lhe curou uma infecção dentária: “Eu tive dor de dente/tomei algumas delas/as bichinhas logo agiram/depois de certo (pouco) tempo/senti-me melhorado/e os sintomas maus sumiram (composta no final dos anos 70, mas só gravada em 1997, no álbum Quanta), ou sobre o Fusca do pai dele: “Zeca meu pai comprou/um Volkswagen blue/Zeca meu pai comprou/um carrinho todo azul”. Da mesma época que Pílula de alho, ele fez Chiquinho Azevedo, então baterista de sua banda, que salvou uma criança de se afogar no mar: “Chiquinho Azevedo/garoto de Ipanema/já salvou um menino/na Praia, no Recife/nesse dia Momó também estava com a gente”.

Portanto nada a estranhar que uma das melhores faixas de Ok, Ok, Ok, seja Jacintho: “Jacintho/já sinto aqui na barriga/mais preguiçosa a bexiga/mais ociosos os rins/Jacintho/já sinto aqui no meu peito/alguns sinais de defeito/coração, pulmões e afins”. Jacintho Honório, presença constante nas colunas sociais paulistanas,teve o nome tomado emprestado por Gil para comentar o peso da idade: “Velhice/cálculos, calos, calvície/hora de chamar o vice/para assumir o poder”. Um disco cuja inspiração geral foi o fato da máquina ter apresentado defeitos, e obrigá-lo a sucessivas internações no Hospital Sírio-Libanês, dois anos atrás (quando Jacintho Honório completou cem anos).

Bem Gil, o filho do cantor, e produtor do álbum, confirma esta urgência do pai em gravar, no texto que escreveu para o disco: “Recebi uma ligação de minha mãe dizendo, filho, se pai compôs algumas músicas e quer lhe mostrar. Horas depois nos encontramos em seu estúdio onde ele apresentou uma série de seis ou sete canções feitas num intervalo de dez dias. Para formar o repertório do disco, totalmente inédito, somou-se a essa meia dúzia de canções outras que havia sido compostas pouco tempo antes”. 

Enquanto Gil definia a temática particular e intransferível, Bem estabelecia o desenho sonoro: “Defini como conceito para o disco a ideia de que os acompanhamentos rítmicos, harmônicos e melódicos deveriam estar condicionados a voz e ao violão, e que gravaríamos a maioria das bases com Gil cantando e tocando ao mesmo tempo. Assim as sessões fluíram de forma orgânica, com o canto e o toque de Gil ditando andamentos e intenções”. O disco começou a se materializar ainda em 2016, quando Gilberto Gil certificou-se que tinha se livrado das internações:

“Quando vi que não precisava ficar mais preocupado com ter que me tratar, pensei: ‘Deixa eu tratar de outras coisas’. Estava com apetite, com sede de cantar, tocar e escrever. A alma deu aquele empurrão nas minhas costas e saí escrevendo. Fui pondo as frasezinhas e quando me dei conta tinha feito dez, oito canções numa semana”. A revelação feita no programa do jornalista Jorge Bastos Moreno, na CBN. Moreno (falecido em junho de 2017), é parceiro de Gilberto Gil em Afogamentos, um fox, cantado em dueto com Roberta Sá, das convidadas de Ok, Ok, Ok.

Além da cantora, fazem participações especiais João Donato, em Uma coisa bonitinha, parceria antiga, finalizada para esta gravação (Donato canta um trecho e toca piano elétrico. Toca também na faixa Tartaruguê). E ainda, Yamandú Costa, numa canção em sua homenagem, em que Gil tece elogios ao talento do violonista. Gil que também é violonista celebrado, conta com o homenageado nesta faixa. E conta em quase todas as faixas com músicos jovens, mas já de carreiras veteranas, Mestrinho (acordeom), Bruno de Lullo (baixo), Domenico Lancellotti (bateria), Pedro Sá (guitarrista). E os parentes, filhos, filhas, netos.

DISCO

Homenagens, referências, reverências e reflexões, Ok Ok Ok desliza suave ao longo dos seus 55 minutos, 12 faixas principais, três bônus. Trabalho pontuado pela voz e violão de Gilberto Gil (guitarra em duas faixas). Homenagens ao neto Sereno (na faixa homônima, o filho de Bem Gil)), à bisneta Sol de Maria (neta de Preta Gil), à mulher, Flora (em Real), à atriz Maria Ribeiro, e à jornalista Andréia Sadi (Lia e Deia), além dos homenageados já citados. Com total domínio da arte de compor, midas da criação musical, Gil incorpora beleza até à suas dúvidas diante da areia movediça do terreno da política nacional, na música que dá título ao álbum. Gil evita se posicionar, não por conta de questionamentos, mas pela luz difusa da atual conjuntura: “Ok, ok, ok/sei que não dei nenhuma opinião/é que eu pensei, pensei, pensei, pensei/palavras dizem sim/os fatos dizem não”, canta nos versos finais da canção, cantada com Lancellotti, di Lullo e Bem Gil.

Um disco tem a marca GG de qualidade, mas poucas faixas candidatas a hit. Uma destas é Nada é real, um funk com metaleira caprichada, e melodia cativante. Bem Gil conta que o pai estranhou o resultado do disco, em que se expõe mais do que em qualquer outro dos seus trabalhos, até no desenho da capa, aquarela de Luiz Zerbini, mais eloquente do que a fotografia poderia ser: “Ao ouvinte admirador ou não de sua obra, temos neste disco Gilberto Gil de sobra”. Depois de tanto se jogar às causas em que acreditou, Gil tem direito a cuidar do próprio jardim.

 

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