Ano passado, num final de tarde, Emílio Santiago fazia o que mais gostava de fazer quando não estava cantando: conversava e ria generosamente com (e dos) amigos. Naquele dia, vários pernambucanos o visitavam no Rio de Janeiro. No meio de uns cariocas mudos diante das piadas seguidas de riso farto e indisciplinado, ele me puxou no canto e, em voz alta, confidenciou: “É assim mesmo, vizinho, eles não entendem o humor da gente, o jeito da gente que é de lá”, gargalhando, outra vez, o intérprete que cantou parte obrigatória da trilha sonora de nossos amores e desamores, ajudou a dar ao mundo, a partir do Brasil, o samba jazz e resolveu amenizar sua carioquice se declarando, nos últimos tempos, o mais novo pernambucano do pedaço.
Com sua morte inesperada, o Brasil perdeu a voz monumental, a potência aveludada e sincopada que fazia dele nossa resposta aos grandes intérpretes norte-americanos do jazz. Emílio, lhe cunhou a crítica, foi o último grande cantor do Brasil que cantava. Nós perdemos um amigo incomparável, um pernambucano não por condição, mas por opção. Nos últimos anos, comprou casa aqui, se apaixonou por amigos, se encantou com os cheiros, cantos e gostos. Adorava a comida regional.
Quando me chamava de “vizinho”, não queria apenas sublinhar que tinha residência perto. Mas que compartilhava, deliberadamente, da identidade ligada ao Recife e a Olinda. Os olhos brilhando como menino que acaba de vencer torneio diante dos pais, ele perguntava: “E aí, fiz bonito na abertura do Carnaval?”.
Com seu último disco, Emílio ganhou um Grammy Latino. Mas queria se apropriar da prosódia pernambucana. Se interessava cada vez mais por Antônio Maria, Capiba, Moacir Santos... Disse que ia encampar um disco de frevos. Planejava gravar com a Nena Queiroga que hoje, como tantos, chora sua ausência.
Quando Emílio encontrava o chef César Santos, o banqueteiro Claudinho Manoel e a advogada Socorro Lapenda, gente que virou sua família no Recife, parecia que estrelas pipocavam no céu de tanta alegria junta. Seu humor era sempre afiado, magnético. Uma vez, numa festa, o riso mal cabia na boca quando atriz e a jornalista Aninha Nogueira lhe pediu para ler, em voz alta, um texto deliciosamente surreal sobre a vida amorosa dos insetos. “Adorei! Pela primeira vez, alguém me manda para ler um texto e não me obriga a cantar Saigon”, disse, para desabar naquela risada gostosamente sincopada.
No último Carnaval, ele queria saber como estava a montagem da exposição Diário das frutas. Contei que vários atores e cantores haviam gravado lindamente as crônicas que escrevi como ponto de partida para os quadros de Tereza Costa Rêgo. E ele, o olhar fixado no canto das pálpebras, disparou: “Ótimo! Mas você não vai me chamar para gravar nada nessa exposição, vizinho!?”. E eu, frouxo para rir como ele, disse que lhe tinha reservado simplesmente a frase que sintetiza a exposição. “Acho bom!”, disse. No outro dia, sua voz grave registrava a sentença: “Uma fruta, no Nordeste, jamais deve ser mordida. Sempre chupada”. Ouvida, atualmente, nas salas da mostra, é uma das últimas coisas que ele gravou num estúdio.
Se sua música vai estimular a formação de novas gerações de intérpretes, a vocação indomável de Emílio Santiago para a alegria vai sempre ensinar, a quem dele se aproximou como amigo, a ter mais talento para a vida. Mesmo com a saudade do tamanho de Saigon.