Lançamento

Marina Lima e a autonomia da palavra

Convidada do Festival A Letra e a Voz, a cantora fala, entre outras coisas, da voz, da literatura em sua vida e do seu primeiro livro, que lança sábado, no Recife

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 20/08/2013 às 5:34
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Convidada do Festival A Letra e a Voz, a cantora fala, entre outras coisas, da voz, da literatura em sua vida e do seu primeiro livro, que lança sábado, no Recife - FOTO: NE10
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Fernanda Torres estava em cartaz num teatro da Gávea. Atuava em sua primeira peça como dramaturga, Deus é química, um texto meio carnavalizado sobre várias dependências químicas – da comida aos psicotrópicos. De passagem pelo Rio, fui vê-la. Ao final, naquela inércia meio êxtase em que nos colocamos depois de um espetáculo que vale a pena, vi outra pessoa encostada na borda do palco. Era Marina. Marina Lima, a cantora, a voz quente e mais cool do pop brasuca. A imagem ficou cristalizada: Marina, sim, é uma mulher com o hoje raro hábito da reflexão. Seja explicitamente, como no disco-manifesto Fullgás, lá de 1984, em que se pronunciava contra a caretice que burocratiza espíritos. Seja provando que é possível gritar com dois tons a menos, como tem feito. Sábado (às 20h, no Museu Murilo La Greca), a cantora se veste de escritora e participa do festival A Letra e a Voz com um debate e lançamento de seu primeiro livro. Título de sua canção homônima, Maneira de ser (Ed. Língua Geral) é um retrato em primeira pessoa em que Marina fala de músicas, livros, caretices, coragens, transgressões, ausências. “A pior coisa que pode acontecer a alguém é ganhar um livro. Você está numa linha, vem um livro e muda totalmente a tua direção”, diz, nesta entrevista.

JC - No livro, você lembra do período de reclusões, de ausências, depois do disco Abrigo. E diz que passou uma época “desencarnada”. A palavra escrita está ajudando a essa Marina renovada a “reencarnar”?
MARINA LIMA -
(Risos) Sou filha de piauienses, essa expressão, “desencarnada”, é muito nordestina, né? Não se usa muito aqui. Sim, a palavra escrita me interessa muito, não sei se mais que a palavra cantada. A cantada me interessa, principalmente para compor. Não imagino isso, não cantar. Mas a palavra escrita adquiriu uma autonomia que não tinha tanto, no meu trabalho, a palavra vinha atrelada à musica, agora, se abriu uma outra janela. Eu não tinha uma pretensão literária, entendeu? Mas todas as formas que eu puder ter para deixar minha marca nesse mundo,vou usar.

JC - Você já musicou Drummond, poemas do teu irmão Cícero, outros textos literários.... Nunca se sentiu tentada a musicar o poema que Haroldo de Campos escreveu em sua homenagem?
MARINA -
O próprio Haroldo já me perguntou se não musicaria. Eu me sentiria estranha, me sentiria cabotina, fazendo um auto elogio, ficaria sem graça, tenho pudor, fico apenas lisonjeada que o Haroldo de Campos tenha escrito aquilo para mim.

JC - Mas a Marina do poema, apesar de ser você, é também uma outra Marina. Quase arquetípica...
MARINA -
Mas eu sei que sou eu, qualquer pessoa que escutasse isso saberia que eu estaria falando de mim mesma. Eu sou uma pessoa discreta, tipo um Chico Buarque, não é que eu fuja de nada, mas não sou dada a grandes elogios. Menos ainda autoelogios.

JC - Stendhal ainda é um escritor que te interessa muito?
MARINA -
É um grande escritor, tem um livro, que é o Tratado sobre o amor, que puxou meu tapete. Quando li, descobri que eu fazia tudo ao contrário do que ele fazia, os truques sobre a conquista, o relacionamento, eu fazia tudo ao contrário (risos).... O Campbel tem um livro, sobre o poder do mito, que diz que a pior desgraça que pode acontecer é alguém é é ganha um livro. Você vem numa linha, e alguém te dá um livro e te tira completamente de onde você estava. Ganhei um livro da Hilda Hilst, uma coletânea, que diz assim, “Fico besta quando me entendem”, ganhei da Patrícia Palumbo, um livro de entrevistas, com esse título. É uma série de entrevistas dela, geniais, me fez uma companhia enorme, acalmou muito meu espírito, eu me acho uma pessoa muito comum...essa mulher (Hilst), as coisas que ela falava, são coisas de gênios (risos), de pessoas que só falam o que pensam. O livro é uma loucura (risos).

JC - Algum novo autor?
MARINA -
Tem uma escritora italiana, Silvia Arlan, uma autora que me impressionou muito, há muito tempo não leio nada tão potente, se passa numa cidade de interior, numa praia...onde se passa um absurdo. Ela tem uma fluência, uma força, é muito bem escrito, todo que ela falou me atraiu, um romance irresistível. Ao mesmo tempo, tem uma frieza.

JC - Voltou a compor?
MARINA -
Quando eu tava fazendo o livro, que foi relativamente rápido, demorou menos de um ano, fiquei um pouco impregnada dessa falta de melodia. Eu tive um receio de que (a música) ficasse mais distante para mim, então, comecei a compor de novo.

JC - O que tem te motivado?
MARINA -
A primeira música que eu fiz, que já ta pronta, é um rock bem radical, chamado Partiu, sobre uma liga de gente, sobre um tipo de gente que quer. Parece um pouco com as coisas que estão acontecendo no Brasil agora, as pessoas que estão buscando uma nova liga de conceito e ética. Uma outra música que comecei a fazer é sobre a Rita Lee e a Maria Bethania, porque elas são recorrentes para mim. Admiro muito as duas, as coisas que elas fizeram. Volta e meia eu penso nelas, tenho um diálogo imaginário com as duas. Entao, comecei. Já compus especialmente para Bethânia, O lado quente do ser (Com Cícero), e compus outra, chamada Doce espera, essa duas ela gravou. Fiz também uma canção chamada Mapa Mundi, que gravei o (disco) Dessa vida, dessa arte. Fiz para Bethânia, mas ela não gravou.

JC - Compor pensando na voz, na maneira de Bethânia se expressar, é diferente de quando você compõe com clareza de que a letra vai para a tua própria voz?
MARINA -
Eu sempre componho para mim. Se não, não vou gostar, não vai sair daqui. Às vezes, são sobre histórias ou coisas que não tem nome. Mesmo Mapa-mundi, não disse que era para ela. A gente compõe pra gente. Algumas histórias são para alguma pessoa. São sempre a vida que se leva e o que se leva.

JC - Há discos e shows em que a palavra falada entrecorta a cantada. A poética falada deve ficar mais presente nos teus shows daqui pra frente?
MARINA -
Fiz um show, em São Paulo, chamado Maneira de ser, um show que fiz em cima do livro. Nesse show, converso muito com o publico, é uma conversa roteirizada, mas eu converso. Falo da minha vida nos estados Unidos, do Lobão, do Tom Jobim. Coisas sobre as quais eu preciso falar, são vitais. Tom é muito importante para mim. Regravei Garota de Ipanema, Samba do avião, Ligia... fiz uma viagem de navio, dos Estados Unidos pro Rio, em que ele estava, persegui o Tom no navio, foi onde eu o conheci. Anos depois, na TV, fiz o especial sobre ele, cantando Ligia. No show, falo sobre o estouro da bossa nova. Eu quero que esse show vá para Recife. O empresário tá tentando levar. Quero fazer no (Teatro ) Guararapes, que é lindo, fortíssimo.

JC - Você foi para as ruas? O junho de manifestações tem sido inspirador?
MARINA -
Isso tem me dado uma sensação de bons tempos enormes, é muito chato quando você mora num lugar e as pessoas não têm consciência do que está acontecendo. Aí, você descobre que tem muita gente cansada da falta de liberdade, de ética, de uma série de coisas, coisas que você achava que só você se dava conta. O Brasil parece que virou um país adulto, que quer discutir sobre a ética, sobre a igualdade racial, os percalços das coisas, o que se pode pagar, o custo de vida, os hospitais, os gastos enormes com a Copa, com os estádios. Eu fui só numa manifestação. Eu tava fazendo show em São Paulo. No Rio, tive que cancelar um dia de show porque era na Cinelândia, no centro dos protestos. Em São Paulo, que é muito grande, apesar das manifestações, teve público para o show, e mantivemos.

JC - Na época do projeto de união civil entre pessoas do mesmo sexo, o projeto da Marta Suplicy, você se recusou a ir depor sobre o assunto no Congresso porque sabia que seria, de alguma maneira, manipulada e exposta por uma parcela extremamente conservadora do parlamento, ia fazer parte de um teatro tacanho de cartas marcadas. Hoje, a Justiça se antecipou ao legislativo e tem tomado iniciativas histórias. O Brasil está, enfim, maduro para discutir o casamento gay?
MARINA -
O povo brasileiro era e é muito pobre. Às vezes, a religião acaba sendo a única saída das pessoas. As pessoas se apossam da vida do outro, o povo acaba, muitas vezes, teleguiado. É bom ver essa juventude de todas as correntes, que não quer partido, emblema, para o povo ver que o mundo mudou, até o Papa mudou! Tudo isso é muito importante. Fico feliz de o Brasil se sentir vencedor, de estar discutindo isso. Agora, isso virou uma coisa vital, o mundo inteiro tá discutindo isso. Ainda tem coisas como o Ratinho, um programa extremamente machista, de raiva. Mas o fato é que o Brasil voltou a falar, é uma coisa de primeiro mundo. Voltou a falar no assunto (o casamento gay), acho que a gente tá chegando lá. Descobriram que o Brasil existe. Não dá para continuar com a juventude na Idade Média. Acho que a Internet foi muito importante. Havia muito interesse de a direita não deixar que as informações não chegassem. Com a internet, a informação chegou, não há mais como controlar esse resquício de religião e da moral, a gente se libertou de uma coisa meio arcaica.

JC - No disco Fullgaz, de 1984, você e Cícero escreveram um manifesto contra a caretice. Faria sentido escrever um manifesto semelhante no Brasil de 2013?
MARINA -
Acho que se faz manifestos de várias formas hoje em dia. Outro dia, eu tava com Cícero, conversando sobre como há formas de se fazer isso.

JC - Uma parceira tua recente, Karina Buhr tirou a blusa, na internet, questionando a exclusividade masculina de ter direito a exibir o torso nu...
MARINA -
A Karina é uma mulher muito forte, e faz o que faz com uma contundência enorme, ela acredita mesmo nas coisas que ela prega. As coisas que ela faz chamam atenção, a gente se sente obrigado a olhar.

JC - Algum projeto de livro novo?
MARINA 
Fui convidada para escrever no site As meninas on line. É um site de São Paulo, criado pela Sonia Rassi, jornalista, que convidou algumas colegas. Escrevemos eu, a Constança, a Ligia Pereira. Faço crônicas, indico músicas, tem poesia, artistas...Minha personalidade ali.

JC - É meio heterodoxo, não jornalístico, mas Maneira de ser, o livro, é bem autobiográfico. Você é uma artista pop, do palco, das grandes plateias, mas sempre fala da necessidade do isolamento. O livro é o teu limite de exposição?
MARINA -
É um retrato que fala de mim agora. Até agora, sim, eu tenho 57 anos, é importante que eu fale, eu tenho uma obra, um passado, e essa obra tem que dizer a que veio, os assuntos que te interessam, te colocam na roda. É para falar da minha obra. Adoro inventar coisas, só que tudo tem uma certa formalidade. Gosto de ordem, sou virginiana, não gosto da loucura indecifrável, só me interessa o que eu posso decifrar, tenho essa missão de poder compartilhar dúvidas, pensamentos, com a maior clareza possível, para que eu possa tocar, potencializar.

JC - Ainda que falem de amor e intimidades, a maior parte dos discos brasileiros são na terceira pessoa. Isto é, apesar de nos comoverem, um disco da Gal ou da Bethânia, nem sempre nos revelam o que elas estão vivendo no momento da realização. Mas os teus discos são confessionais. Nos sentimos meio íntimos teu depois de ouvi-los. Esse recurso, essa fruição direta, é um recurso intencional?
MARINA -
As questões que permeiam são iguais as de muita gente. Eu crio um espaço para falar, quero primeiro minha forma de ser para ir deixando meu desenho, sou uma artista que vai colocando meus lutos, eu não me coloco acima dos meus ouvintes, mas, claro, não penso nisso quando estou fazendo. Meu talento é traduzir o que é importante. Mas ao mesmo tempo há uma distância, uma formalidade. É até uma questão de educação (risos), buscar a medida certa da intimidade.

JC - No livro, você diz que Pierrot do Brasil é um frevo. Nunca tinha ouvido aquela música como um frevo...
MARINA -
Poxa, Bruno...olha só: “ pã, pã....(cantarola a melodia). É claro que é um frevo, isso vem da minha descendência nordestina, sou filha de piauienses. Quando era garota, eu ia muito, na minha infância, a Recife e Salvador. Carnaval, frevo...eu já fui pro Carnaval daí sem cantar. Sou uma curiosa, uma pessoa solitária, gosto de olhar, não consigo pegar aquilo, me meter no meio, mas gosto de olhar. Tenho lembranças, é uma relação de amor, da minha história de amor.

JC - Você diz que admira a concisão elegante de certos jornalistas e já entrevistou a Bjork. Isso te interessa como parâmetro de escrita? Quem você gostaria de entrevistar ainda?
MARINA -
Engraçado, gosto de ler jornal em jornal, acho que internet é outro tipo de coisa, gosto de ler alguns comentaristas. Gostaria de entrevistar, deixa eu pensar um pouco, a. Rita Lee. Primeiro,eu preciso saber se ela aceitaria, tem tanto assunto com ela. Uma entrevista seria pouco. Seria injusto escolher.

JC - O problema que você teve na voz já é algo bem resolvido na tua cabeça?
MARINA -
É como diz Sartre, o inferno são os outros. Eu já falei tanto, me sinto repetindo sempre, machucaram uma das minhas cordas, o que me dificulta cantar. Eu já não canto tanto, é uma questão. Eu amo música, não abro uma janela e fecho outra.

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