Na capa de Coração a batucar, seu sexto disco (Universal Music), Maria Rita está séria, elegante, circunspecta, numa foto de pouca luz. Não exatamente o que se espera de um disco de sambas: “Esta capa tem sido muito comentada. Eu queria uma capa bonita, achei a foto bonita. Queria estar bonita, chamei um ótimo fotógrafo, uma grande maquiadora, uma excelente editora de imagens. Vi a foto e disse é esta. Quis fugir ao óbvio. Vejo Alcione cantar vestida no maior luxo, Diogo Nogueira canta na maior elegância. Quis fugir da caricatura, e tem samba que é muito triste”.
Maria Rita ilustra o comentário sobre a tristeza no samba com o episódio de um casal que veio ao seu camarim, depois de um show em Lisboa, que passou a discutir. A mulher dizia preferir a Maria Rita mais alegre. O marido pergunta (imita sotaque luso) se ela não entendeu as letras, tristes, dos sambas cantados por ela. A cantora conversa sobre Coração a batucar num amplo salão de um hotel montado num casarão antigo, de amplos salões, no tranquilo bairro de Santa Teresa, Zona Sul, do Rio.
Entrevistas individuais. Cadeira da entrevistada diante da cadeira do entrevistador.
Uma das poucas estrelas surgidas na MPB no século 21, arredia a princípio, certamente pela insistência na comparação com a mãe, Elis Regina, Maria Rita, firmou-se no primeiro time de cantoras brasileiras. Cumprimenta jornalistas e o pessoal da gravadora, sem estrelismo. Veste-se com elegância discreta. Logo a entrevista vira bate-papo. “Tenho um carinho especial pelo Recife. Foi lá que comecei a andar? Estava com a minha mãe, foi num hotel do Recife que dei os primeiros passos”. Surpreende-se quando sabe que sua versão do frevo de bloco Valores do passado (Edgard Moraes, gravada para o álbum 100 anos do frevo – é de perder o sapato, lançado pela Biscoito Fino), toca com frequência na Rádio Jornal: “Nossa gravei com o maior medo, estava cantando com Spok,”.
O samba este ano está em alta? Jair Rodrigues acaba de lançar dois CDs com clássicos do samba, Gilberto Gil, um álbum de sambas pinçados da obra de João Gilberto, a Nívea patrocina uma turnê de sambas, por fim, mas não menos importante, ela grava seu um disco dedicado ao gênero: “Ouvi de pessoas do mercado, as que se dedicam ao negócio que é novamente a vez do pagode. Não sei se tem a ver com a Copa, que desperta no inconsciente coletivo este querer pelo samba, a música que se tornou a música da nacionalidade. Em relação a mim, não tenho resposta para gostar de samba. Talvez a única resposta seja herança intrauterina. Cresci com minha mãe ouvindo sambas, ela gostava e gravou muitos sambas. Eu fui para desfiles de escolas quando era bem criança. Lembro da porta-bandeira rodopiando. Para mim este gostar pelo samba contém duas coisas que me são muito fortes: integridade e comprometimento”.
Coração a batucar não é apenas um disco de sambas. É também um disco sobre o samba. Maria Rita parece querer desvendar o mistério do samba, em composições, a maioria, como o samba de Paulinho da Viola, autorreferentes. Ela diz que não havia notado antes esta faceta dos sambas do álbum, que não tem recriações de clássicos, nem composições assinadas por medalhões da MPB. Grande parte dos sambas é da turma da linha de montagem que vem há anos fornecendo sucessos a Alcione, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho : Arlindo Cruz, Almir Guineto, Noca da Portela, Serginho Meriti, Xande de Pilares, e renovadores do ritmo, feito Rodrigo Maranhão. A exceção é a emepebista Joyce Moreno, em uma das músicas mais conceituais do álbum, Mistério do samba.
“Nasci pelas graças de Deus num país que tem samba”, canta Maria Rita na música de Joyce, penúltima faixa do álbum, que termina com um manifesto, É corpo, é alma, é religião (Arlindo Cruz/Rogê/Arlindo Neto): “Eu não nasci no samba/mas o samba nasceu em mim”, os versos iniciais ratificam a herança intrauterina a que Maria Rita se referiu no começo da conversa: “Foi uma das músicas feitas para mim. Acho importante esta coisa da auto referência porque chega ao quem ouve como uma afirmação de autoestima”.
MEDALHÕES - Por que não gravar os medalhões da MPB? Os compositores da geração de Elis Regina, a maioria continua compondo, e bem. Maria Rita concorda, não sabe bem porque não grava Gil, Caetano, Edu, Chico. Ou pelo menos não grava mais. Não esconde que há um pouco de bloqueio: “No meu segundo disco, Sobre todas as coisas entrou na ultima hora. Gravei todas as músicas, abria o caderno e ela estava ali, No ultimo minuto, decidi, fazer voz e piano e foi uma das mais fortes do disco”.
Na relação dela com estes compositores paira, inevitavelmente, a presença de Elis que deu voz aos primeiros sucessos de Gilberto Gil: “Chamo Gil de titio, ele é sempre muito carinhoso comigo. Gravei com ele, participei de um DVD, o Banda dois. Não sabia que eu era a única convidada me assustei, Com Caetano fico numa reverência tão grande que não dá pra imaginar. Outro dia publicaram que eu gravaria um disco inteiro com músicas de Caetano. Fiquei irritada, porque extraíram a história de um contexto, eu nunca disse isto. Mas preciso gravar mais Caetano. Porque leio o que ele escreve, e ele está cada vez melhor, mais gato. Acho incrível a capacidade de criar, de renovar. Talvez com seja excesso de admiração”.
Toca com Maria Rita um grupo formado por Davi Moraes (guitarra), Alberto Continentino (baixo), Wallace Santos (bateria), Rannieri Oliveira (teclados), Marcelinho Moreira e André Siqueira (percussão), uma instrumentação que, assim como a foto da capa, poderia se encaixar num disco de jazz, ou de rock: “Mas gravamos como uma roda de samba. Fizemos ao vivo. No Estúdio dos Técnicos num salão grande, fiquei num local onde dava pra ver todos os músicos. Davi (Moraes), queira mudar um solo de guitarra. Não permiti, queria tudo muito verdadeiro. Não sei se foi por eu ser muito agitada. Mas a música de Rodrigo Maranhão, por exemplo, não estava saindo. Combinamos deixar pra depois. Mas de repente, veio, comecei a cantar, o pessoal a tocar, e saiu em dois takes”.