“Papai e mãe eram duas crianças quando se casaram. Ele tinha 18 anos, ela 16, e eu três.” Esta é a célebre abertura da autobiografia Lady sings the blues, de Billie Holiday (escrita pelo jornalista William Dufty), um dos melhores livros do gênero. No entanto, não foi bem assim. A mãe dela, Sarah Julia Harris, conhecida como Sadie, estava com 19 anos; o pai, um aspirante a músico chamado Clarence Holiday, com 16, quando a cantora, batizada de Eleanora Fagan, nasceu no hospital da Filadélfia (e não em Baltimore, como está no livro), em 7 de abril de 1915. Os pais nunca se casaram e não viveram juntos.
Billie Holiday completaria hoje 100 anos. No entanto viveu apenas até os 44, e morreu há 56 anos, de complicações hepáticas e cardíacas, em consequências de anos de vício – álcool, cigarro, cocaína, maconha e heroína. Passou horas no corredor do hospital esperando ser atendida. Não foi reconhecida. Enquanto era medicada, policiais guardavam a porta do quarto. Ela estava sob custódia por uso de drogas. Desde sua mais demorada prisão, em 1947, um ano de recolhimento por posse de drogas, a polícia não a deixava em paz. Teve cassada sua licença para cantar em clubes noturnos. No livro, ela procura amaciar sua relação com as drogas, mas sua fama de junkie competia com a de maior cantora de jazz.
Todas as vicissitudes que marcaram sua existência podem ser resumidas em única palavra: racismo. Humilhações, no Sul dos Estados Unidos, por não poder usar bebedouro destinado aos brancos; ou quando viajava com a orquestras de Artie Shaw, quase toda de brancos, ser obrigada a usar a entrada de serviço nos hotéis e clubes chiques, onde os únicos lugares permitidos a negros eram o backstage e o palco. Ou passar pelo constrangimento, quando cantava com a orquestra de Count Basie de ser obrigada escurecer o rosto, por causa sua de pele morena (descendia de irlandeses por parte dos avós).
Numa entrevista concedida em Boston, em 1959, no de sua morte, a cantora comentou: “Cada vez que faço um show tenho que lutar contra tudo que escrevem sobre mim. Preciso me esforçar o tempo inteiro pra que as pessoas ouçam com seus próprios ouvidos e acreditem novamente em mim”. Eleanora cresceu uma criança de rua. Aos dez anos foi recolhida a um reformatório por pequenos delitos. Aos 11 foi estuprada por um vizinho. Aos 14 ganhava a vida como prostituta. Aos 15, começou a cantar em cabarés baratos no Queens, em Nova Iorque, cidade até o final da vida. Foi lá que adotou o nome pelo qual ficou conhecida Billie Holiday (tomado emprestado à estrela do cinema mudo, Billie Dove).
Ela gravou o primeiro 78 rotações, em 1933, com Riffin the scotch, numa face, e Your mother’s son on law na outra, início de uma obra quilométrica (só o que gravou na RCA entre 1933 e 44 rendeu uma caixa com Dez CDs). Quando estava com 24 anos, o ocupadíssimo trompetista Wynton Marsalis encontrou tempo para, durante um ano, escutar e estudar a discografia inteira de Billie Holiday, que se tornou uma de suas referências. Para ele não apenas um cantora, mas uma instrumentista de jazz. O fraseado, os silêncios, os improvisos eram de alguém que se valia da voz como um integrante a mais num grupo de jazz. No fim da vida, quando biógrafos lamentam que tenha estragado a voz, críticos como Nathan Hentoff, ou o trompetista Miles Davis apontam qualidades despercebidas em Billie Holiday, mesmo quando demasiadamente debilitada.
A famosa autobiografia de Billie Holiday foi uma forma de se furar o cerco que se fechava em torno da cantora, em seus últimos anos: o livro foi escrito pelo jornalista William Dufty, cuja mulher era amiga de Billie (que abandonou a escola quando era criança). Dufty, um dos editores do New York Post, escreveu o livro a partir de entrevistas que a cantora concedeu em sua casa, uma espécie de refúgio para Billie Holiday, que vinha de um ano de prisão por drogas e estava proibida de cantar em estabelecimentos onde se vendessem bebidas alcoólicas, o seu habitat, e onde começou a carreira, na década de 1930.
Embora com algumas fantasias, a autobiografia ensina muito sobre Billie: “Com exceção de discos de Bessie Smith e Louis Armstrong que escutei quando criança, não sei de ninguém que realmente influenciou meu jeito de cantar, naquela época, ou atualmente. Sempre quis ter o sonzão de Bessie e o feeling de Pop (como chamava Louis Armstrong). Jovens me perguntam de onde se deriva meu estilo, e como se desenvolveu, estas coisas. O que posso lhes dizer? Se você encontra uma melodia que tem a ver com você, não se precisa desenvolver nada, se sente, e quando a canta outras pessoas sentem também. Comigo, não tem nada a ver com trabalho, arranjos ou ensaio... Se fosse cantar Doggie in the window aí seria trabalho. Mas cantar canções como The man I love, ou Porgy não me dá mais trabalho do que sentar e comer um pato chinês assado, e eu adoro pato assado”, revela um trecho de Lady sings the blues.
Numa noite de inverno, em 1933, o produtor John Hammond foi ao Harlem. Seu destino era o bar da cantora Monette Moore, que já havia sido crooner de Duke Ellington e Benny Carter – reza a lenda que para conferir uma novata, indicada por Mildred Bailey (outros citam Count Basie). Branco, rico (Hammond era da família Vanderbilt), ele não teve dificuldade em ter acesso ao local. Naquela época, o único local onde pretos e brancos podiam ficar sob o mesmo teto eram os bares e cabarés onde se apresentavam shows de jazz (o jazz foi por muito tempo chamado de “música de zona”). Indisposta, Monette Moore não pode cantar. Quem a substituiu foi uma mulata, de pele clara, de 18 anos, que prendeu a atenção de John Hammond antes mesmo que cantasse.
Quatro décadas depois, em um entrevista, Hammond comentou seu encontro com Billie Holiday: “Fiquei espantado. Ela não era uma cantora de blues, mas interpretava canções populares de uma forma que as tornava totalmente suas. Tinha um ótimo ouvido, e memória excelente para as letras. Ela cantava com um senso esquisito de fraseado. Sempre adorou a sonoridade de Louis Armstrong, e não é exagero afirmar que cantava como ele tocava trompete. Naquela noite reconheci que ela era a maior cantora de jazz que eu já havia escutado”.
John Hammond tem autoridade para dizer isto, e sabia reconhecer talentos quando via um. Foi responsável pelas descobertas de, entre vários outros, Count Basie, Charles Christian, Big Joe Turner, Aretha Franklin, Bob Dylan, Leonard Cohen e Bruce Springsteen.
(leia matéria completa na edição impressa de hoje do Jornal do Commercio)