Zé Ramalho completa 40 anos de carreira e começa a marcar a data com uma caixa, sob o selo Discobertas, com três CDs e um DVD: Voz e Violão – 40 Anos de Música. Em agosto, ele carimba a data redonda com um concerto em João Pessoa, com a Orquestra Sinfônica da Paraíba, e monta uma turnê nacional que deve começar no Theatro Municipal do Rio. O projeto Voz e Violão, com produção de Robertinho do Recife, tem apenas Zé Ramalho e alguns dos seus instrumentos preferidos. Um dos discos é um projeto antigo, de vinte anos atrás, que foi agora resgatado. Em entrevista ao Jornal do Commercio, ele fala da carreira, dos 40 anos de estrada e, claro, de violões.
JORNAL DO COMMERCIO – Zé,por que começar o projeto de 40 anos de carreira com este trabalho voz e violão?
ZÉ RAMALHO – Foi durante uma conversa com Marcelo Fróes, presidente da Discobertas, que surgiu essa ideia. Eu já tinha gravado todas essas músicas recentemente, no estúdio de Robertinho de Recife. Era o início de um projeto, que estava sendo abordado pela Sony Music. Depois, esse projeto foi abortado, em função das exigências que eu estava fazendo diante da gravadora.
JC – Pelo que você fala de violões nos encartes, é também uma celebração ao instrumento. Você conta que ganha muitos, além dos que compra. Quantos violões você estima que tem sua coleção?
ZÉ RAMALHO – Não dá para estimar, porque em 40 anos, foram muitos que eu adquiri e ganhei. Muitos eu presenteei para fãs-clubes, parentes, filhos e alguns músicos que já tocaram comigo. Na verdade, a marca canadense Godin é a que mais eu aprecio, e tenho comigo uma coleção razoável desses instrumentos. Então diríamos que eu tenho comigo uns 20 e poucos instrumentos entre violões e violas.
JC – Uma época você foi conhecido pela viola, você atentou para o instrumento dos repentistas quando trabalhou para o documentário de Tânia Quaresma (Nordeste: Cordel Repente, Canção, 1974), ou já tocava antes?
ZÉ RAMALHO – Eu já tocava antes. Tinha descoberto esse universo da viola nordestina e larguei a guitarra para me dedicar a essa modalidade. Me exercitava muito em casa, praticava escalas, ponteios e riffs que eu ia criando, à medida que o tempo ia passando. Fiquei muito envolvido com esse processo e, quando cheguei no Rio de Janeiro, tinha fama de bom violeiro, vide a fase com Alceu Valença (1975), show do qual eu participei tocando várias violas e fui pressentido pelas plateias. Fiz também vários trabalhos em estúdio, para outros artistas (discos com Walter Franco, Cátia de França, Eustáquio Sena) nos quais está registrado um farto trabalho dessas minhas violas.
JC – Nos seus primeiros discos a influência da cantoria de viola é forte, você usava martelo agalopado e outras métricas do repente. Em que ponto elas se misturaram com o rock que você começou a tocar com os Quatro Loucos, os Gentlemen, em João Pessoa?
ZÉ RAMALHO – Na verdade, o rock foi a forma musical que me atraiu para o mundo da música, lá pelos anos 60, fase da Jovem Guarda, que é 1965-1966 e o Nordeste, junto com essa cultura excepcional, dessas métricas, veio depois. Com essa descoberta, das métricas, me senti seguro e senhor da minha obra, para escrever minhas letras, fincadas nessas modalidades de cantoria.
JC – A cantoria de viola aparece explícita no título de Décimas de um Cantador, que é nome de disco e de música, parceria com Flaviola, gravada em 1987, mas que é um rock que lembra J.J Cale. Depois, em Eu Sou Todos Nós, ela volta em duas faixas. Em que a cantoria de viola ainda te influencia?
ZÉ RAMALHO – Em quase toda letra que eu faço a cantoria de viola está presente. Se não por completo, mas ela é quem inspira tudo. E as melodias também, já surgem impregnadas de Nordeste, que é a minha base. Porém, não sou um cultuador, nem purista. Se não eu viraria um museu. Meu trabalho é exatamente a mistura, a alquimia, a ousadia de saber como misturar essas influências, cada vez que eu vou compor ou gravar um novo disco.
JC – Você já pensou num disco inteiro de grandes cantadores, os irmãos Batista, Pinto, João Paraibano, Ivanildo Vila Nova, enfim, de craques da poesia oral nordestina?
ZÉ RAMALHO – Eu já produzi, no início dos anos 80, alguns discos desses cantadores. Produzi Oliveira de Panelas, produzi Otacílio Batista e esses dois são também meus mestres, principalmente Otacílio, que era o maior de todos, para mim. Me ensinou com paciência e generosidade muitas coisas da filosofia desses bardos. Tive, nos anos 70, o privilégio, durante as filmagens do documentário Nordeste: Cordel, Repente e Canção, de estar na varanda da casa de Lourival Batista, o Louro do Pajeú, e ali fui testemunha de grandes contendas entre violeiros que estavam sendo gravadas pela cineasta Tânia Quaresma. São registros que foram fundamentais para mim, nessa descoberta do pop para o Nordeste.
JC – Você comenta num dos encartes que tinha ideia de gravar um disco apenas com músicas instrumentais suas, este projeto ainda está nos seus planos?
ZÉ RAMALHO – Não de imediato. Porque, na verdade, minha ideia era, em cada disco meu, colocar uma faixa instrumental, com meus exercícios de viola e um dia poder reunir essas faixas e virar um disco. Até no disco Nação Nordestina (2000), tem a faixa mais energética e representativa desse universo violeiro, que é a faixa Violando com Hermeto, na qual, mais uma vez, o destino me privilegiou, com a participação desse grande mestre. Tá lá, é só conferir!
JC – Você gravou o Voz e Violão em 1996. Na época, o formato unplugged MTV tava forte ainda. Você chegou a ser convidado a fazer o programa? Neste disco ao vivo, você toca que violões, tem a viola também aí?
ZÉ RAMALHO – Esse disco de 1996 está representando a fase livre, desse tempo que são 20 anos atrás. A referência é a evolução voz e violão para a maturidade atual, dessas novas gravações, também de voz e violão, que foram gravadas no estúdio do Robertinho e estão sendo comercializadas para o meu público. A ideia é observar a maturidade que essas músicas atravessaram durante esses 40 anos. Tem que ver a obra como um todo, porque são essas músicas que foram gravadas, regravadas e viraram cult. Até mesmo nas manifestações da época do impeachment, foram cantadas em algumas dessas manifestações.
JC – Como ressaltou Marcelo Fróes, no encarte, neste CD de 1996 você aponta para um projeto futuro seu, o de cantar músicas de outros cantores, Jackson, Raul, Dylan. Embora você faça isso desde antes, em Décimas de um Cantador, por exemplo, gravou versão de This Boy, dos Beatles, e faz um trecho curtíssimo de Number 9, que deve ter a ver com Revolution #9, do Álbum Branco dos Beatles. Qual o critério do repertório, revisitar os hits em roupagem acústica? Tanto nos dois que foram lançados agora, quanto no de 96, a ênfase é no hit?
ZÉ RAMALHO – A ideia foi colocar as músicas de sucesso como veículos de comunicação minha com o público. Porque essas músicas que eu escolhi não são músicas datadas, ou músicas que serviram para uma época. Elas são compatíveis com qualquer época. Elas permanecem encantando as plateias em minhas apresentações. Todo artista vive da sua arte e daquilo que captou e encantou o público. Não tenho tédio nenhum em cantar essas músicas há 40 anos, nem terei, porque nunca canto nenhuma delas igual ao que cantei da vez anterior. Sempre busco, em cada show, sentir o que estou dizendo, para poder passar para a plateia, a emoção necessária e verdadeira do meu trabalho.
CAIXA
Com produção dele e de Robertinho do Recife, Zé Ramalho encaixou os discos Zé Ramalho Voz e Violão 1996, os dois volumes Voz e Violão 40 anos de Música (com 22 faixas) e o DVD homônimo, espécie de making of didático, no qual a câmera enfatiza as mudanças de acordes enquanto ele canta a canção. “Para a pessoa que está querendo aprender os acordes, está tudo ali. A câmera está ali mostrando tudinho, do jeito que o autor fez. Foi feito de propósito, ali o cara vai olhar cada nota”, confirma Zé Zé Ramalho.
Os dois volumes gravados especialmente para esta caixa, contêm o repertório que Zé Ramalho geralmente leva ao palco, com algumas canções que ele não costuma cantar sempre, com é o caso de Força Verde e Pepitas de Fogo. As demais canções, como ele aponta na entrevista, são composições conhecidas, as que o público pede, se não forem tocadas em shows. O álbum de 1996 é uma raridade a que poucos tiveram acesso. Foi gravado quando o cantor, depois de problemas pessoais, retomava a carreira e voltava por cima com o projeto O Grande Encontro, com Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo.
Ele completava então 20 anos de carreira, e queria celebrar com um disco voz e violão, o que acontece só agora. O disco foi gravado no estúdio de Robertinho do Recife, em equipamento analógico, mas acabou sendo arquivado. É um trabalho que capta Zé Ramalho no pique da volta ao sucesso, à estrada, e já aponta para um caminho que ele seguiria: o do intérprete de outras obras. As doze faixas do CD reúnem, até a oitava canções, as autorais: Avohai, Jardim das Acácias e Frevo Mulher. Em seguida, ele canta Luiz Gonzaga, Raul Seixas e Bob Dylan, de quem Zé Ramalho gravaria discos inteiros.