Dialogar, em tempos de intolerância, parece cada vez mais difícil. Em meio à artilharia verbal lançada pela direita e pela esquerda, poucos se dão ao trabalho de ouvir o contraditório. A arte, que tem entre suas características intrínsecas a capacidade de abrir espaço para conversas necessárias sobre a sociedade contemporânea, parece particularmente afetada por essa tendência, voltando a ser alvo de patrulhamento como se apenas um discurso fosse possível. Por isso é instigante e também positivamente desconfortável quando surgem obras como Altíssimo, que estreou sábado (14), no Teatro Arraial, cujo interesse é questionar certezas e não reafirmar teorias.
Obra que marca o retorno de Pedro Vilela aos palcos após a saída do grupo Magiluth, em 2015, o espetáculo parte de uma análise das igrejas pentecostais para falar de um assunto mais complexo, que é a própria fé. De início, Pedro, no papel de um pastor, explica à plateia o que deveria ocorrer caso aquilo fosse um culto. O passo a passo disseca com frieza o que, para quem faz parte de uma religião, de um culto, de um fandom, enfim, para quem acredita, é quase uma segunda natureza. Pedro e Alexandre Dal Farra, responsável pela dramaturgia, querem lembrar que quase tudo nas nossas relações sociais é fruto de uma construção.
Essa impressão fica mais clara nos momentos me que Pedro se direciona à plateia, em um momento confessional sobre suas próprias experiências com religião e fé. Ela lembra um episódio no qual, com amizades e família ruída, sem dinheiro ou perspectiva, encontra uma nota de cinquenta reais no bolso e, por um motivo que não sabe, a dobra cuidadosamente, como se desejando que ela transformasse sua realidade. Ele teve fé naquela nota. O que é a fé? Qual a nossa religião? Enquanto divaga, ele vai sendo apagado de fotos nas quais aparece criança, ao lado da família, em seu casamento e com os ex-companheiros de grupo.
IMAGENS DO INSÓLITO
Uma angústia profunda atravessa o espetáculo, não só do âmbito religioso, mas também do próprio teatro. Vindo de uma estrutura coletiva, o ator e diretor tem que se redescobrir sozinho no palco e esse processo doloroso fica (positivamente) impresso no trabalho, em vários elementos, como a atmosfera sombria da iluminação. Vilela não tem medo de se mostrar vulnerável e a entrega no palco é total.
As imagens construídas por Pedro, como o cadáver de um animal que lembra um cordeiro, símbolo bíblico de pureza e entrega, ou a cena em que queima o dinheiro (a fé), ampliam a força da dramaturgia. O trabalho não oferece uma solução, uma lição de moral e, principalmente, não entrega a expiação que nós, como plateia, tantas vezes queremos. Ainda bem.
A peça ganha mais duas apresentações, sábado e domingo, às 19h, no Arraial.