Análise

Grammy deixa questão de gênero e assédio de lado e premia Bruno Mars

Evento, mais uma vez, colocou números em destaque e, com isso, perdeu chance de celebrar novos clássicos

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 29/01/2018 às 21:28
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24kMagic, de 2016, rendeu a Bruno Mars seis Grammys, cinco milhões de cópias vendidas, um single nº1 e dois singles Top 10 na Billboard Hot 100 - FOTO: AFP/Reprodução
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Maior premiação da música mundial, o Grammy chegou à sua 60ª edição, domingo, em Nova York, consagrando os números em detrimento da qualidade e ousadia artística. O grande vencedor da noite foi Bruno Mars, excelente artista responsável por alguns dos maiores hits dos últimos anos, mas cujo disco, 24k Magic, era o mais fraco entre os indicados à categoria mais importante do evento. Além disso, em um momento em que a luta das mulheres contra o assédio e por igualdade ganha os holofotes, o Grammy foi essencialmente masculino.

Assim como o Oscar, o Emmy e basicamente toda grande premiação da indústria cultural, a popularidade é muitas vezes usada como termômetro para a eleição dos vencedores. No ramo da música, essa premissa parece ganhar mais força por conta do rápido declínio que o mercado sofreu em pouco mais de uma década. Discos praticamente não vendem mais e as plataformas de streaming têm sido a aposta das gravadoras. Dessa forma, o Grammy tem, com raras exceções, celebrado artistas que ainda trazem retorno para a indústria fonográfica.

Tome-se como exemplo as duas últimas edições: em 2016, a vencedora de álbum do ano foi Taylor Swift, com 1989. Ela concorria, entre outros, com To Pimp a Butterfly, disco de Kendrick Lamar aclamado como um clássico desde seu lançamento. Taylor vendeu 10 milhões de cópias puras (sem streaming), enquanto Kendrick comercializou cerca de 2 milhões. No ano passado, Adele, com seu correto 25, tirou o grande prêmio de Beyoncé e sua obra-prima Lemonade. Adele vendeu 21 milhões de álbuns, Beyoncé, 3 milhões.

Além disso, a derrota de artistas negros com trabalhos claramente superiores para artistas brancos, gerou uma onda de críticas contra o Grammy. Este ano, o evento parecia ter entendido o recado e, na categoria álbum do ano, três foram indicados três afrodescendentes – Kendrick Lamar (com DAMN.), Jay-Z (4:44), Childish Gambino (Awaken, My Love) e Bruno Mars (24k Magic) – e uma mulher, Lorde (Melodrama). Mars saiu vencedor – aliás, ele levou todos os seis prêmios aos quais concorria, entre eles Música do Ano (That’s What I Like) e Gravação do Ano (24k Magic).

Jay-Z, aliás, foi o grande perdedor da noite: não ganhou nenhum dos oito prêmios aos quais estava indicado. Outro que saiu de mãos abanando foi Luis Fonsi, de Despacito, maior sucesso do ano. O porto-riquenho, ao lado de Daddy Yanke, deveria ter saído com o prêmio de Música do Ano, mas ao menos teve a chance de se apresentar na premiação. Outra grande injustiçada da noite foi SZA. A cantora estava indicada em cinco categorias com seu excepcional álbum de estreia Ctrl. Sua vitória como revelação do ano era dada como certa, mas foi para Alessia Cara.

Kendrick Lamar saiu com quatro dos sete prêmios que disputava, entre eles Melhor Álbum de Rap e Melhor Colaboração de Rap, por Loyalty, com Rihanna. A sensação que fica, no entanto, é que o Grammy continua a diminuir a influência, reduzindo-a a um nicho de gênero, e o potencial artístico do californiano, que entregou a performance mais visceral da noite.

O Grammy foi marcado ainda por protestos contra Donald Trump, inclusive com quadro pré-gravado no qual artistas e até Hillary Clinton leram trechos do polêmico livro Fogo e Fúria.

TESTOSTERONA

Como protesto contra a cultura de assédio, muitas artistas usaram rosas brancas presas às suas roupas. A iniciativa, porém, parece ter sido esvaziada diante da esnobada da premiação em relação às mulheres. Do total de premiados do Grammy 2018, apenas 17% foram do gênero feminino – nenhuma nas categorias principais. Na briga por Performance Solo Pop, concorriam Kelly Clarkson, Pink, Kesha, Lady Gaga e Ed Sheeran, que levou o troféu.

Uma das apresentações mais fortes da noite foi a de Kesha, que entoou Praying, canção cujo teor é uma crítica direta à opressão das mulheres (ela acusou seu antigo produtor, Dr. Luke, de abusos físicos e psicológicos). No palco, ela foi acompanhada de artistas como Cindy Lauper e Camila Cabello.

Lorde, única indicada ao prêmio de Álbum do Ano, foi a única artista de sua categoria a não ser convidada a cantar uma música solo na premiação. Questionado pela revista Variety sobre esse fato, além da pouca representatividade das mulheres, o produtor da premiação, Ken Ehrlich, afirmou que “não era possível encaixar todo mundo”.

A declaração que talvez resuma bem o espírito machista desta edição veio do presidente do Grammy, Neil Portnow, que disse que as mulheres precisavam “se impor” para concorrer em mais categorias.

“Acho que tem que começar com mulheres que tenham a criatividade em suas almas e corações, que querem ser musicistas, que querem ser engenheiras, produtoras e querem fazer parte da indústria no nível executivo. Elas precisam se impor porque acho que elas seriam bem-vindas”, disse, como se já não houvesse excelentes profissionais mulheres em todos os ramos da indústria.

O anacronismo desta edição, além de provocar revolta nas redes sociais, pode ter se refletido também na audiência, que caiu 24% em relação ao ano passado.

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