Papai Noel, ceia, confraternizações, presentes e... caixinhas de Natal. O item, geralmente apresentado no formato de um recipiente enfeitado e embalado em papel colorido junto ao caixa, já entrou no cenário natalino do comércio e de prestadores de serviços. Há casos em que a ferramenta garante quase um 14º salário para os funcionários, graças à cortesia de clientes que veem no recurso uma forma de compensar o bom atendimento durante o ano. No entanto, entidades empresariais e especialistas desaprovam ou, pelo menos, recomendam cuidado com o uso desse instrumento.
"Sobrando uma moedinha, colabore com a nossa caixinha!”, avisa, entusiasmado, o vendedor Bruno do Monte, 21 anos, ao fim de cada atendimento na MJ Bandeira, tradicional loja de produtos naturais no centro do Recife. Se o cliente atende o pedido, o operador de caixa aumenta a voz para avisar aos demais funcionários “Caixiiiinhaaa!”, imediatamente respondido por um sonoro “Obrigadoooo!”. E é assim todos os dias, várias vezes por dia.
Como a repetição desse procedimento indica mais dinheiro, nunca cansa. “A gente gosta né? Quem não gosta?”, responde Bruno à reportagem. A gerente da loja, Manoelina Ferreira, prefere não revelar quanto as doações à caixinha costumam render, mas arrisca que é “quase um 14º salário”. Segundo ela, a MJ Bandeira foi a fundadora desse costume nos arredores do Mercado José, quando os trabalhadores incluíram o pedido das contribuições nas rotinas de fim de ano, há mais de quatro décadas.
Manoelina diz que há clientes que não gostam da algazarra da caixinha, mas assegura que os simpatizantes são maioria e, por isso, o uso é mantido. Ela comenta que os consumidores mais antigos e mais assíduos são os que maiores contribuintes, como é o caso da dona de casa Maria José Bezerra, 60 anos. Há quase 10 anos ela frequenta a loja e atribui suas doações ao espírito natalino: “Nessa época, a gente gosta de ajudar quem precisa mais do que a gente”.
Na Docemel, onde a celebração por cada cliente generoso é parecida, a gerente Elaine Lins, 26 anos, levou um mês usando o tempo livre para fazer uma caixinha em forma de casa, com direito a neve e uma chaminé, por onde o dinheiro entra. Usou papelão, algodão, cartolinas, luzes e enfeites de Natal. “Fica mais atraente para o cliente”, argumenta Elaine, que divide o apurado com ou outros cinco funcionários.
Veja comemorações
Além de lojas como a MJ Bandeira e a Docemel, padarias, salões de beleza, lanchonetes e outros estabelecimentos comerciais são adeptos à arrecadação via caixinha. Para a psicopedagoga Rossana Barreira, 46 anos, a prática é abusiva. “Todos os lugares que você vai, até em um condomínio onde você vai visitar alguém, tem uma. Aí o funcionário fica olhando você como quem pergunta ‘não vai colaborar?’. Isso constrange a pessoa”, reclama Rossana, “e todo mundo já recebe o 13º salário e alguns ainda têm outras bonificações”.
Condomínios, aliás, são outro ponto comum das caixinhas, deixadas nas portarias, ao alcance de quem passa. A síndica Mariana Costa, que está no primeiro Natal na função, permite que os funcionários mantenham o hábito. “Muita gente quer dar presente às pessoas que lhe prestam serviços mas não tem tempo de comprar ou não sabe o que dar. Esse dinheiro, que é voluntário, é uma forma de resolver isso”. No prédio da síndica Vera Lúcia Campelo, a opção foi por dar cestas de alimentos. É feita uma lista com itens, que os condôminos assinam se quiserem, e cada produto deve ter seis unidades, a quantidade de funcionários. “Nunca pediram para fazer caixinha, mas se pedissem eu deixava. Mas aí não teria a cesta. Uma coisa ou outra”.
Conflitos podem parar na Justiça e no Procon
A adesão ou a aversão às caixinhas pode passar do nível de opinião e parar na Justiça ou nos órgãos de defesa do consumidor. O coordenador do Procon Estadual, José Rangel, revela que recentemente chegou à entidade uma denúncia sobre um estabelecimento onde o dono só permitiu a coleta porque ele participaria dos ganhos. O caso está em apuração, mas se confirmado, pode haver multa e outras penalidades. Rangel pontua que isso é má-fé contra a generosidade do cliente: “A empresa não está lesando somente o funcionário, mas também o consumidor, que acha que aquilo está indo para os funcionários, que são mais humildes”.
O advogado trabalhista Marcos Alencar diz que nunca acompanhou casos em que a inclusão da renda da caixinha foi parte de um processo em que se questiona o salário. No entanto, ele explica que o funcionário pode usar esse “extra” como argumento para aumentar a remuneração devida. Por esse e outros motivos, como a possibilidade de gerar algum constrangimento entre os moradores, a consultora jurídica do Sindicato da Habitação de Pernambuco (Secovi-PE), Nívea de Paula Coelho, não aconselha que a prática seja adotada nos condomínios. “Para quem não tem, recomendo que não faça”, aconselha. Ela ressalta ainda que, em caixinhas ou outros recursos de bonificações fora das obrigações legais, como o 13º salário, o condômino não é obrigado a participar. Ambos os advogados destacam que o empresário ou o síndico, por lei, têm o direito de proibir a colaboração, se quiser. Por outro lado, assim como o empregador não pode participar dos ganhos, é vedado de obrigar os funcionários a fazerem o recolhimento das contribuições.
Gestor deve avaliar perfil do seu cliente
A Câmara de Dirigentes Lojistas do Recife (CDL Recife) não é a favor das caixinhas de Natal, como informa o superintendente da entidade, Hugo Phillipsen: “Somos contra qualquer tipo de benesse fora do que determina o contrato de trabalho. O empresário não deveria permitir”. Já a analista de orientação empresarial do Sebrae-PE, Conceição Moraes, diz que o uso vai de acordo com o tipo da empresa e, principalmente, do seu público-alvo. “Não há problemas se ela é vista como legítima para o cliente”, opina. Ela esclarece que, em franquias e lojas para pessoas de renda mais alta, esse tipo de colaboração pode não ser adequada, uma vez que a disponibilidade de renda e o hábitos de consumo próprios desses clientes já incluem gorjetas diferenciadas. O contrário ocorre nas camadas mais populares, em que essa “gorjeta coletiva” facilita para quem tem pouco dinheiro mas gostaria de contribuir. “O importante é que tudo seja feito de forma agradável, solidário e divertido”, ensina Conceição (veja mais dicas delas e dos demais especialistas consultados no infográico acima).
Conceição complementa que a renda extra não deve ser a base da qualidade do serviço, especialmente porque é pontual. Para ela, o atendimento é um reflexo do que a empresa passa para o trabalhador, do relacionamento ao reconhecimento. Do ponto de vista de gestão de pessoas, a diretora da JBV Soluções em RH, Vanci Magalhães, acrescenta que, para os empreendedores que têm a prática já consolidada mas acham melhor extingui-la, a sugestão é substituir o bônus por outro tão bom ou melhor: “Pode até ser uma cesta de Natal mais reforçada, mas o ideal é que seja algo novo e não algo corriqueiro, como um brinde especial ou um vale-presente”.
Uma "senhora caixa" de 50 anos
Em 2014, a caixinha dos funcionários do restaurante japonês Quina do Futuro, nos Aflitos (Zona Norte do Recife), completará 50 anos de história. A coleta de gorjetas por parte dos clientes começou com os imigrantes japoneses da família Matsumoto, quando fundaram a pastelaria Tokyo’s, no bairro da Boa Vista, em 1964. A cada colaboração, os funcionários, em coro, exclamavam “Caixinha! Ooobrigado!”, o que divertia os clientes, especialmente os estudantes. Quando abriram o restaurante, em meados dos anos 80, apesar da mudança de local, de perfil e de público, o hábito não foi abolido e permanece até hoje.
Além de não ser limitada ao período natalino, a caixinha da Quina do Futuro tem outros diferenciais. Feita de acrílico e sem qualquer sinalização, ela fica guardada próximo ao caixa, atrás de uma divisória de madeira, invisível aos desavisados. Os garçons não fazem qualquer referência à existência dela, só revelada quando algum freguês novato pergunta “Por que vocês dizem ‘Caixinha obrigado’?”. Clientes antigos, como a empresária Carolina Maia, que há mais de 20 anos vai ao estabelecimento, já conhecem o caminho e fazem contribuições costumeiramente. “Contribuo por gostar da casa e pelo bom atendimento que recebo. E é tão discreto que não chama a atenção para nós”, diz Carolina.
“Recebemos pessoas que frequentavam a pastelaria com os pais quando crianças e se divertiam com a comemoração. Agora, elas trazem os filhos para fazer o mesmo aqui”, conta o empresário André Saburó, filho de uma dos fundadores da Tokyo’s. Toda a gestão da coleta é feita pelos funcionários, exceto gerentes e integrantes do Departamento Pessoal. São 50 pessoas que recebem entre R$ 10 e R$ 30 semanalmente. Entre elas, a caixa Eduarda Maria de Oliveira: “Quando vim trabalhar aqui fiquei muito feliz quando soube da caixa”.