VOLTA POR CIMA

Ex-traficante hoje cuida da limpeza de abrigo na Cracolândia

O ex-traficante que era integrante de uma facção criminosa, hoje ajuda na recuperação de alguns dependentes

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Publicado em 18/05/2018 às 9:50
Foto: Gabriela Biló / Estadão
O ex-traficante que era integrante de uma facção criminosa, hoje ajuda na recuperação de alguns dependentes - FOTO: Foto: Gabriela Biló / Estadão
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No ano passado, Fábio Henrique, de 45 anos, acordou com um jato de água e respingos de lama pelo corpo na Praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo, onde usuários haviam montado acampamento após a operação policial na Cracolândia. Ainda sob efeito do crack, pensou: "Meu Deus, se Você existe, me tira dessa situação". Levantou em seguida, avisou aos colegas que iria ao banheiro e procurou um Cratod, unidade de saúde voltada para dependentes. Ficou 32 dias internado.

Com duas passagens pela polícia e mais de 6 anos de pisão, na soma, Henrique conta que trabalhava para o Primeiro Comando da Capital (PCC) na Cracolândia, onde era chamado de "Carioca". Entre as suas funções, ia buscar pasta-base, matéria-prima para produção do crack, em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. "Voltava de ônibus com a droga toda amarrada no corpo com Durex", conta. Também cozinhava as pedras em imóveis dentro do fluxo, além de fiscalizar e reprimir a presença de pessoas de outras facções no território.

"Eu tinha status, andava com duas armas na cintura", diz Henrique. Segundo relata, havia um código quando passava uma viatura policial para que os dependentes químicos formassem um "escudo humano". "Olha a loira", diziam. "Na mesma hora, os usuários me cercavam e me protegiam até de tiro. E eu passava tudo porque, se a polícia batesse, já estava limpo."

Henrique diz não consumir mais crack desde dezembro. Também saiu do crime, segundo conta. Hoje, é funcionário de em um dos três Atendes, equipamento assistencial da Prefeitura voltado para política de redução de danos, instalados na Cracolândia.

Das 13 às 22 horas, ele veste o uniforme e integra a equipe de limpeza de quartos, banheiros e pátio do Atende, onde usuários podem comer, tomar banho e dormir. Ajuda, ainda, a distribuir as marmitas. "A gente trata todo mundo como a gente queria que fosse tratado", afirma o ex-traficante, que foi beneficiado pelo serviço antes e passou por seleção para ser contratado.

Os espaços recebem pessoas em situação de rua, que são encaminhadas por equipes de Assistência Social ou de Saúde. Segundo funcionários, muitos comem, se limpam, descansam e voltam para o fluxo. Há também atividades e oficinas, como reforço escolar, grupo de música e roda de capoeira. Uma vez por semana, é feita assembleia com usuários.

Há outros dois equipamentos semelhantes na Vila Leopoldina, zona oeste, e na Avenida Roberto Marinho, na zona sul, regiões que registram concentração de usuários de drogas - as chamadas "minicracolândias".

Balanço

Segundo a Prefeitura, os Atendes fizeram mais de 860 mil atendimentos no último ano - o cálculo considera que, se o usuário cortou o cabelo e almoçou, foram dois atendimentos. Em média, são 1,2 mil pessoas por dia. Entre pernoite e temporárias, são 1.292 vagas nos cinco equipamentos. Normalmente, os dormitórios, em contêineres, são compostos por quatro beliches. Funcionários relatam que a procura aumenta em épocas de frio, mas diminui no calor por causa do abafamento nos quartos.

Gerente de um Atende, Mabel Garcia diz que o serviço se preocupa em resgatar a autoestima e a devolver, aos poucos, a autonomia dos usuários. Na unidade, a porta fica fechada e há vigias. "Ontem (quarta-feira, 16) entrou um cara dizendo que era do PCC. Ele tinha guia mas, na verdade, veio cobrar uma dívida de R$ 3 mil de um dos conviventes", justifica. "O mais difícil é a questão da recaída. É muito triste." Para Mabel, um dos desafios é restabelecer vínculos sociais entre os usuários de droga. De julho a janeiro, a unidade que coordena conseguiu contactar 364 famílias de dependentes - só 31 voltaram a morar com elas. "Muitas vezes há um histórico de violência."

No seu caso, Henrique não vê o filho, hoje com 14 anos, desde 2010, quando foi preso pela última vez. Acha que o menino foi adotado. "Se eu conseguir encontrá-lo vai ser uma alegria muito grande", afirma. Há uma semana, também começou a namorar uma moça que procurou o equipamento após ser mantida em cárcere privado pelo ex-marido. Está feliz, conta. "Eu fui resgatado."

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