O cronograma já estava definido: a colação de grau de Rhanna Ariadne, 26 anos, seria no próximo dia 28. Nessa data, receberia o certificado de conclusão do curso de Medicina na Unifacs para, finalmente, conseguir dar entrada na inscrição no Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb). Só que os planos mudaram: na noite de terça-feira (20), recebeu a confirmação de a colação foi antecipada para a tarde desta quarta-feira (21).
A correria foi motivada por uma pauta nacional: o lançamento do novo edital do programa Mais Médicos, que abriu 8,5 novas vagas para todo o país, com o objetivo de preencher os postos deixados pelos médicos cubanos. Além da Unifacs, a Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e a Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC) também decidiram antecipar o processo para que os alunos possam participar do Mais Médicos. Na Bahia, são 853 vagas em 313 municípios e 19 distritos indígenas.
Leia Também
Nesta quarta, o Cremeb chegou a montar uma força-tarefa para atender à demanda dos recém-formados. De quarta até sexta-feira (23), a entidade estima emitir pelo menos 250 novos CRMs (como são chamados os números de inscrição no conselho). Além das faculdades baianas, até uma instituição do Espírito Santo entrou em contato com o Cremeb para solicitar a antecipação de 20 novos CRMs. Só para dar uma ideia, em todo o ano de 2017, foram emitidos 1.036 CRMs. Em 2018, até segunda-feira (19), foram 837 inscrições. Ou seja, em três dias, o Cremeb espera emitir o equivalente a 30% do que foi feito em 11 meses.
Isso tudo porque o prazo para inscrição no programa, que começou na quarta-feira, vai até domingo (25). Nessa primeira fase, somente brasileiros formados no Brasil ou com diploma revalidado no país podem participar. As vagas que não forem preenchidas é que serão destinadas à segunda etapa. Nesse segundo momento do cronograma, que aceitará brasileiros formados no exterior e estrangeiros, as inscrições começam em 27 de novembro.
Até o dia 12 de dezembro, 8,3 mil médicos cubanos devem deixar o Brasil, após o governo de Cuba ter anunciado a saída do programa na semana passada. A decisão foi motivada por declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro, que afirmou que “expulsaria” os cubanos do Brasil com o Revalida – exame de validação de diplomas estrangeiros.
Os profissionais cubanos vão retornar a Cuba a partir desta quinta-feira (22). De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), uma das responsáveis pela cooperação internacional entre o Brasil e o país da América Central, os primeiros cinco voos em direção a Havana estão previstos para quinta, assim como sexta-feira (23) e sábado (24).
As cinco primeiras viagens devem levar médicos que atuam nos 26 estados brasileiros, além do Distrito Federal. Eles saem de quatro polos do país: além de Salvador, as cidades de Brasília (DF), Manaus (AM) e São Paulo (SP).
Vantagens do programa
A festa de formatura da recém-formada Rhanna Ariadne só vai acontecer em janeiro. Mesmo assim, com a mudança, ela teve que sair de Feira de Santana, no Centro-Norte do estado, onde estava com a família, para vir a Salvador às pressas. De acordo com ela, a antecipação da entrega dos diplomas foi um pedido dos estudantes.
“A gente pressionou a faculdade, entramos em contato com a coordenação e eles começaram uma força-tarefa para emitir os certificados”, diz Rhanna.
Só na turma de Rhanna, que tem 98 estudantes, pelo menos 80 manifestaram interesse em participar do programa. A maioria dos estudantes, porém, ficou surpresa quando descobriu que o edital seria lançado já nesta semana. Eles esperavam que o chamamento público fosse divulgado somente em meados de dezembro. Resultado? “Todo mundo se desesperou”, revela a jovem.
O problema é que as vagas são preenchidas por ordem de inscrição – ou seja, os médicos já esperam que algumas cidades sejam mais concorridas (veja as regras do edital). Quem chegar primeiro leva. Para Rhanna, o Mais Médicos tem vantagens que vão desde o salário – que é de pouco mais de R$ 11 mil – até a estratégia de saúde da família. Na assistência básica, ao contrário dos atendimentos de urgência e emergência, não são necessários muitos equipamentos tecnológicos.
“É um trabalho mais acessível e também é mais seguro. Você tem direitos trabalhistas, recebe certinho, tem direito a 13º salário. Porque quando a gente forma e vai dar plantão, principalmente em contratos como pessoa jurídica, a gente abre mão desses direitos”, afirma Rhanna Aridane.
No entanto, ela está participando de processos de seleção para residência. Se for aprovada e tiver sido escolhida também pelo Mais Médicos, acredita que deve deixar o programa a partir de março. Entre os próprios colegas, ela diz que a turma está dividida – metade pretende trabalhar com assistência básica por um período maior enquanto outra parte já está tentando a residência.
Tanto o programa quanto a residência exigem dedicação em tempo integral. “Acredito que lá pelo mês de março, vai existir uma certa evasão sim, por ser o período de início das residências. Lógico que não vai ser todo mundo, mas vai ter uma evasão”, opina Rhanna, que também acha que a maior parte das vagas não será preenchida. Para ela, mesmo a demanda dos médicos recém-formados não vai ser suficiente para completar o total de postos e parte das cidades menores e mais distantes pode acabar sendo desassistida.
Para o futuro
Alguns recém-formados, como a médica Luana Saback, 35, porém, pretendem passar os primeiros anos na assistência básica. Formada pela FTC, ela colou grau no último dia 14. No entanto, só receberia o CRM na sexta-feira. A pedido dos estudantes, porém, o Cremeb conseguiu antecipar o atendimento aos novos profissionais para esta quarta-feira.
Como já é psicóloga, pretende deixar a residência para o futuro. Sempre teve o desejo de atuar na atenção básica, mas não sabia como seria esse processo de contratação. Ao longo do curso, era comum escutar histórias de colegas que não recebiam o salário combinado ou até mesmo de profissionais demitidos sem aviso, devido a motivações políticas.
“Como sugiram as vagas do Mais Médicos, estamos vendo como uma oportunidade de ingressar na área com mais segurança, porque, de uma forma geral, os vínculos empregatícios costumam ser precários. O Mais Médicos tem essa proposta que é uma garantia para a gente se deslocar”, diz Luana.
Na Escola Bahiana, os estudantes começaram a colar grau desde terça-feira (20), quando a data prevista inicialmente era a sexta (23). A recém-formada Dandara Moreira, 25, conseguiu receber o certificado de conclusão nesta quarta (21). Por enquanto, a residência não está em seus planos. Ela decidiu tentar as provas no próximo ano, até porque também quer tentar entrar nas Forças Armadas.
Entre os colegas, a maioria decidiu se inscrever no programa federal. É praticamente consenso: não tentar seria “loucura”. Embora deseje se especializar em neurocirurgia, ela explica que também gosta da área de medicina de família.
“Sou apaixonada pela neurocirurgia, mas é na atenção básica que você consegue fazer com que o paciente mude de vida. É a melhor forma de prevenção, porque gera os melhores resultados onerando menos”, afirma Dandara.
Demanda dos alunos
De acordo com a coordenadora do curso de Medicina da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, a professora Ana Verônica Mascarenhas, a antecipação da colação de grau atendeu a uma demanda dos alunos. Se a data anterior, prevista para sexta-feira, fosse mantida, não haveria tempo hábil para que os recém-formados fizessem inscrição no Cremeb.
Ela estima que pelo menos 40 alunos devem fazer o cadastro com interesse em se inscrever no programa. “Para nós, da escola, é importante que a população seja assistida, considerando a necessidade da atenção primária. Dada a eminência de as pessoas ficarem descobertas, a escola entendeu que era um papel nosso. Mas é importante que os alunos se fidelizem, não basta se inscrever”, diz ela, que ressaltou que a instituição tem um programa de residência em medicina de família e comunidade desde o ano passado.
Na Unifacs, a coordenadora do curso de Medicina, Maria de Lurdes Lima, também disse que a instituição percebeu que era importante permitir que os estudantes participassem do processo. “É importante tanto para dar oportunidade a eles quanto para que se dê continuidade ao atendimento às populações mais carentes”.
Na FTC, os egressos já tinham colado grau na semana passada, mas a faculdade entrou em contato com o Cremeb para adiantar o processo da inscrição na entidade. Segundo o coordenador do curso de Medicina da FTC, André Nazar, a previsão era de que os alunos só fossem receber o número do CRM na sexta-feira.
Ele explica que a formação oferecida aos alunos hoje já inclui pelo menos 16% de imersão em programas de saúde da família durante o internato (os últimos dois anos de curso). “O aluno já tem uma formação para atenção básica e acaba sendo também o local em que ele se emprega quando se forma. Outros vão fazer residência, mas ainda é minoria”.
Para Nazar, ainda se formam poucos médicos no Brasil. Além disso, a maioria dos profissionais acaba mesmo ficando nas grandes cidades.
“Mesmo o contingente de formados hoje já não dá vazão para compor todas as vagas, sobretudo no interior, porque a maioria quer ficar nas cidades grandes, até por questão de infraestrutura. Muitas vezes, o médico trabalha sem estrutura adequada, por isso a maioria não quer ir. A solução não é a apenas levar médicos a esses lugares, mas investir em estrutura e tecnologia”, aponta Nazar.
Força-tarefa
O Cremeb deslocou pelo menos 15 novos funcionários de outros setores para o atendimento aos novos médicos, além dos sete que já trabalham diretamente com esse serviço. De acordo com o conselheiro da entidade e conselheiro da entidade federal (o CFM), Otávio Marambaia, há um andar inteiro do prédio do conselho destinado a abrigar a força-tarefa para os novos CRMs.
Além da Bahiana, da FTC e da Unifacs, o Centro Universitário do Espírito Santo também solicitou a inscrição de 20 estudantes da instituição no conselho daqui. Para atuar em um determinado estado, é preciso que os profissionais tenham cadastro na entidade da respectiva unidade da federação.
Marambaia explica que foram procurados por muitos estudantes e instituições, com o objetivo de agilizar a inscrição dos profissionais.
“Essa demanda, inclusive, prova que a narrativa de que os médicos brasileiros são elitistas e não querem ir para o interior é mentirosa. Isso não é verdade”,defende Marambaia.
Quando o médico se inscreve no Cremeb, já recebe seu número definitivo em um documento provisório. A carteirinha definitiva, porém, demora entre 30 e 45 dias para chegar, por ser emitida pela Casa da Moeda e conter um chip de identificação. No entanto, somente com o número já é possível se inscrever no programa.
O conselheiro também acredita que não haverá evasão por conta dos programas de residência: “Esse foi outro engodo criado, de que todos os médicos teriam acesso à residência, mas a quantidade de vagas não chega a 50% da quantidade de formado. Na verdade, você tem cada vez mais profissionais disponíveis para esse tipo de programa”.