Por Cássio Oliveira*
Foi em julho de 2006 - há mais de 10 anos do Carnaval 2017 - que o jovem estudante (eu) de música recebeu um convite no mínimo inusitado: "Vamos tocar no Carnaval?", questionou um maestro, empolgado. Bem, vale ressaltar que, naquele momento de frevo não entendia, não tinha nada contra, até me metia a cantar alguns clássicos. Mas, tocar? Não sabia se daria conta. Mesmo assim, não titubeei ao responder que iria entrar na orquestra de frevo de rua e iria me danar a tocar pelas ladeiras de Olinda e no Bairro do Recife.
Esse foi só o começo do meu contato com o ritmo que me encantou de uma forma que não sei mais expressar hoje em dia. Claro que não foi simples, muito menos fácil, aprender. Afinal, na época, ainda estava aprendendo como tocar o meu trombone de vara. Sabia poucas músicas, a maioria fácil. E dali já pular para o frevo, um ritmo lindo, mas muito complexo para ser executado, era um desafio enorme.
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Então tive que me preparar, aprender frevos e entender como funcionava a orquestra. Como eu não fazia conservatório de música, tive de aprender os frevos com os amigos que faziam parte da banda marcial da qual eu fazia parte, em São Lourenço da Mata, no Grande Recife.
E os ensaios de orquestras de frevo me encantaram. Arrumei um caderno velho, bem velho, e comecei a escrever nele tudo que via nas partituras dos mais antigos. Tinha pouco tempo para aprender, os ensaios começam geralmente em dezembro, quando as escolas saem de férias, e muitas das orquestras conseguem um espaço para ensaiar: as salas de aula.
Tem poeira na sala? Tem! É apertado? Sim! Mas os frevos saem? Com certeza! Nem todas as orquestras tem um espaço próprio ou alugado para ensaiar, por isso se viram em escolas, praças, ginásios esportivos, onde puderem. O importante é "amolar o bico" pro Carnaval.
A preparação é cansativa e desgastante, mas necessária para que tanto as mãos dos percussionistas quantos os lábios daqueles que tocam instrumentos de sopro, como eu, ganhem resistência.
Não são raras as vezes que os dedos dos percussionistas chegam a sangrar. Por mais estranho que pareça, alguns comemoram estas feridas. “Se minhas mãos criarem os calos logo em dezembro, vou chegar ao Carnaval com as mãos firmes. Aí, fica muito difícil ferir depois”, me explicou Lucas Oliveira, ex-companheiro de orquestra, que toca caixa.
Foi ali, na sala de aula, na poeira, sem um professor de música, apenas os conselhos dos mais experientes, que aprendi meu primeiro frevo de rua no trombone: ‘Cabelo de Fogo’, do Maestro Nunes, Patrimônio Vivo do nosso Estado, que infelizmente faleceu aos 85 anos, em setembro de 2016.
Depois do primeiro frevo, vieram os outros. E pelos ensaios que já passei, percebi que existem frevos que não podem deixar de ser tocados, de forma alguma, são quase o mantra de algumas orquestras. São eles: Vassourinhas, Hino do Elefante, Hino da Ceroula, Morena Tropicana e o próprio Cabelo de Fogo. Esses, ao lado de Pó,pó,pó,pó e Pé de Coco são os mais pedidos pelos foliões.
Sim, os foliões, não posso me esquecer de quem propicia às orquestras momentos incríveis, outros nem tanto. Bem, já dizia um amigo que trabalha como caixa num supermercado: "Trabalhar com gente é difícil". E aprendi da forma mais difícil que ele estava certo.
Como folião, entendo a euforia que os dias de Carnaval provocam. Nunca soube explicar, nem acredito que precise de explicação, mas com certeza você é uma pessoa durante 361 dias do ano, e é outra nos quatro da folia de Momo.
Ainda assim, não acredite que isso justifique algumas das cenas que já vi nestes dez anos tocando no Carnaval. Como já vi de quase tudo, vou focar nos problemas enfrentados por nós, músicos. Somos empurrados, e poucas vezes são leves os empurrões. Jogam muita coisa na gente, sempre torço pra ser água, mas já enfrentei bloco com pessoas jogando até urina nos outros. Sério, jogaram urina.
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Já jogaram um copo de vidro no trombone de um amigo meu e deram uma cotovelada no trompete de um companheiro de orquestra. Ele teve o lábio rasgado na hora, e o sangue dele jorrou pela Ladeira da Misericórdia, no Centro Histórico de Olinda.
Existem situações que saem do controle, como brigas perto das orquestras ou garrafas jogadas para o alto. Mas conseguimos contornar estas situações. Apenas uma vez em minha trajetória musical vi um bloco ter que parar por conta de uma briga. Isto, porque num bloco no bairro de Caixa d'Água, em Olinda, a confusão terminou com um rapaz baleado, e obviamente não havia mais clima para que a troça seguisse.
Não nego que já me irritei várias vezes, tem gente que esquece que você está com um instrumento, no sol, com sede e com fome. Querem passar no meio da orquestra, o que atrapalha a música, empurram com força e maldade, às vezes, e chegam até ao nível de arrumar confusão com a orquestra, quando empurramos de volta.
A GENTILEZA DO FOLIÃO
Mas nem todos os foliões são assim. Já teve gente que me puxou pra dançar, gente que canta, que quer pegar no trombone pra dar uma "sopradinha". Gente animada, alegre, que não quer confusão, respeita o músico, interage e faz o mais importante: nos dá água.
Se você quer ganhar o coração de um músico no Carnaval, espere ele passar no meio dos Quatro Cantos, arrastando algum bloco sob o sol do meio-dia, e ofereça uma água, cerveja, refrigerante, suco, enfim... mate a sede daquela pessoa, e ela será eternamente grata.
Em dez anos, nunca recebi uma garrafa com água de qualquer que seja a prefeitura para arrastar as troças. Sobre o pagamento das prefeituras, acho melhor nem comentar as raivas que já tive. Em um dos anos, fiz dez festas, e pagaram sete. Até hoje não recebi. Por isso, há dois anos não toco mais para prefeituras, nem governo do Estado.
Agora estou no aguardo de mais um Carnaval, o sábado do Galo, tocando em camarotes; o domingo quente e intenso, um dia onde quase dá pra se ver no ar a magia da festa; a segunda, em que você mata a ressaca com mais cervejas, isso para quem bebe, é claro; e por fim a terça. Amo e odeio a terça. Acho um dia ótimo e animado, todos a mil mesmo tendo pulado os dias anteriores, mas chega a hora que você lembra que ali está chegando ao fim mais um Carnaval.
E nós, músicos, depois de uma imensa maratona de blocos, potes e potes de protetor solar, de ir e voltar de Olinda para o Recife e vice-versa, finalmente chegamos à quarta-feira de cinzas, quando ainda tocamos em algumas poucas festa espalhadas por locais que insistem em não dar fim a folia.
Creio que para os nós, músicos, o Carnaval não sai da nossa vida, é algo que já está no sangue, não importa se é fevereiro, junho ou setembro, o frevo contagia e não tem trompetista ou percussionista que não comece a cantarolar quando ouve, por exemplo, um clássico do nosso Carnaval, como o Frevo Último Dia, do grande maestro Levino Ferreira, falecido em 9 de janeiro de 1970. Seguirei tocando no Carnaval, sim, e um dia ainda terei minha própria orquestra para animar a vida dos foliões pelas ruas afora.
Cássio Oliveira é jornalista*