A eletrificação rural deixou de ser a maior demanda do homem do campo. E, nos momentos de seca e de entressafra da cana-de-açúcar, embora a Bolsa Família ajude a compensar a ausência de renda, trabalhadores rurais sentem falta de frentes de trabalho e atividades produtivas como as do Chapéu de Palha das décadas de 1980 e de 1990. Dezoito anos após o término das gestões de Miguel Arraes em Pernambuco – a primeira delas interrompida pelo golpe militar de 1964 –, o cenário pode ser outro, mas o legado do sertanejo que se tornou uma das principais personalidades políticas da história brasileira aponta, durante seu centenário, que ele passou longe do rótulo de retrógrado e simplista como alguns quiseram lhe impor.
O menino natural do Araripe (Ceará), com semblante sério desde a infância, tornou-se um nacionalista como Getúlio Vargas, defendeu a correção das desigualdades sociais como caminho libertador e não abriu mão de suas convicções. Deixou uma produção política vasta, que é recuperada em novas biografias e outras obras, revelando-se inovador a seu modo e de visão bem mais ampla que os pares daquele tempo e de agora.
Leia Também
“Vivemos um novo momento. Com certeza, hoje, Miguel Arraes teria uma proposta adequada para os problemas atuais. Estaria brigando para impedir que cobrassem a contribuição previdenciária dos trabalhadores rurais. Ele tinha uma extraordinária capacidade de refletir, analisar a situação e apontar caminhos”, diz a jornalista Tereza Rozowykwiat, que durante 12 anos acompanhou a trajetória dele como governador e deputado federal. Autora do livro Arraes, que será relançado com atualizações na próxima quinta-feira (15), por ocasião do aniversário de nascimento do ex-governador, ela destaca não só a coerência e coragem, mas a forma de governar do político. “Agir não para o povo, mas com o povo”, ensinava. Lembra que diante dos críticos que o consideravam simplista demais, costumava devolver: “A quem serve a modernidade?”. Ter luz em casa, água potável, um chão para acomodar a família, uma vaca para dar leite às crianças e renda alternativa nos momentos sem emprego podem significar muito.
“Quem nunca passou fome ou dificuldade na vida não sabe a grandeza dessas obras. Serviam para as pessoas mais necessitadas. Não eram assistencialistas, resolviam os problemas”, defende Amaro Francisco da Silva Biá, 76 anos, diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e ex-prefeito de Barreiros, na Mata Sul de Pernambuco.
Ele conheceu Arraes quando tinha 14 anos, já trabalhava no campo desde os 12, e não esquece o apoio aos camponeses, ainda quando o político exercia o cargo de deputado estadual. “Era um tempo muito difícil. Não tínhamos nossos direitos respeitados. O que ganhávamos do patrão deixávamos no barracão do engenho (espécie de venda). Arraes visitava a área rural para nos ouvir. Quando tornou-se governador, fez o Acordo do Campo, assegurando a nós direitos dos trabalhadores urbanos. Além disso, trocamos o candeeiro pela luz e tivemos o Chapéu de Palha, dando um salário mínimo e cultura de subsistência na época da entressafra da cana”, testemunha, saudoso do modelo de governante. “Hoje, o Chapéu de Palha dá menos de R$ 300 e quem tem Bolsa Família ganha menos. A monocultura empurra o agricultor para a periferia e essa proposta em votação no Congresso da Reforma da Previdência não considera que entramos na lida muito cedo”, comenta.
Além do olhar para o homem do campo, Arraes se destacou nos programas também voltados às periferias, com a urbanização de favelas, criando Banco de Materiais para assegurar a melhoria das habitações e assessoria para regularizar a situação fundiária. “Arraes gostava mais do mandato executivo, pois poderia colocar em prática suas ideias, enquanto, no parlamento, chegava ao máximo a propor”, resgata a jornalista Tereza. Alguns dos programas implantados no Estado transformaram-se em ações amplas, federais, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como o Luz para Todos, que teria atendido mais de 15 milhões de brasileiros nas três gestões petistas.
Ex-governador de Pernambuco defendia a Ferrovia Transnordestina
“A ideia foi dele, de garantir uma renda aos trabalhadores na entressafra da cana. Dei apenas a sugestão do nome”, lembra Ricardo Leitão, ex-secretário de Imprensa de Arraes, no segundo governo, referindo-se ao Chapéu de Palha. Apesar de dar atenção especial a necessidades básicas, como acesso à água, luz, moradia e emprego com direitos sociais, alfabetização de adultos e cultura popular, ele situa a defesa de obras estruturadoras. Das que não conseguiu executar, a Ferrovia Transnordestina era uma das principais. “Ele lutou muito por ela e pela implantação de uma refinaria de petróleo. Pediu a Lula que se ele ganhasse a presidência da República, levasse adiante a Transnordestina”, completa Tereza. O historiador Túlio Velho Barreto, da Fundação Joaquim Nabuco, cita que Arraes inovou também na ciência e tecnologia, criando a Fundação Amparo à Ciência de Pernambuco e tornando o laboratório oficial, o Lafepe, produtor de medicamentos contra a aids. Apoiava, ainda, as pesquisas agropecuárias do IPA.
“No interior, sobretudo no Sertão, Arraes era visto como um mensageiro, tipo Padre Cícero ou Frei Damião. Quando ele chegava numa cidade, era uma correria: o povo queria tocá-lo, abraçá-lo. E ele, na sua simplicidade, conversava, respondia a todos”, comenta o jornalista Marcos Cirano, autor de Porto do Renascimento, em que reúne os discursos de Arraes na última campanha para se reeleger governador do Estado, na qual acabou sendo derrotado pelo ex-aliado, Jarbas Vasconcelos. Foi derrotado naquela disputa e vitorioso na seguinte, como deputado federal.