No meio de idas e vindas entre a indústria farmacêutica e a FDA (sigla em inglês que denomina a agência reguladora do setor de remédios e alimentos nos Estados Unidos), foi dado sinal verde para comercialização do primeiro medicamento para o tratamento das mulheres que têm suas vidas impactadas pelo descompasso da libido. Apelidada de Viagra feminino para fazer analogia à medicação para homens com disfunção erétil, a flibanserina (nome comercial Addyi) é uma pílula cor-de-rosa não hormonal que chegará ao mercado norte-americano ainda neste ano, após ter sido contestada duas vezes pelo FDA.
A primeira negativa foi dada em 2010, quando o medicamento estava nas mãos do laboratório alemão Boehringer Ingelheim. A outra, em 2013 – nesse ano, o desenvolvimento da flibanserina já estava sob os cuidados do Sprout Pharmaceuticals, grupo que desenvolveu a fórmula e que foi comprado por US$ 1 bilhão pela farmacêutica canadense Valeant em 20 de agosto – dois dias depois de o medicamento ter sido aprovado pela FDA.
Com a promessa de tentar solucionar a falta de apetite sexual, a flibanserina nasceu após uma série de pesquisas que contaram com a participação de mais de 11 mil mulheres. Aquelas que fizeram uso da pílula alegaram ter tido, em média, 4,4 experiências sexuais satisfatórias em um mês – contra 2,7 antes de o estudo ser iniciado.
O fármaco, ainda sem previsão de chegar ao Brasil, é destinado a mulheres que estão na pré-menopausa e se queixam de desejo sexual hipoativo (DSH), nome científico para caracterizar um distúrbio que mescla a diminuição ou ausência de libido à angústia, sofrimento e incômodo pela falta de volúpia. Estima-se que 10% das mulheres, em todo o mundo, convivam com o problema, considerado a grande caixa preta dos sexólogos.
“Com a flibanserina, inauguramos uma nova fase no cenário da sexualidade feminina, embora não possamos prever com precisão se a medicação será capaz de resolver problemas sexuais comuns entre as mulheres”, salienta a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo (USP).
Referência no Brasil no universo da produção científica ligada à sexualidade humana, ela acredita que, com o medicamento no mercado, a sociedade passará a compartilhar mais informações sobre o desejo sexual feminino. “Assim, esperamos que mitos, tabus e preconceitos sejam quebrados.”
A psiquiatra informa que a flibanserina tem como papel incrementar a ação dos neurotransmissores que ajudam a aumentar o interesse sexual. “O medicamento age no cérebro para liberar dopamina e noradrenalina e, ao mesmo tempo, inibir a ação da serotonina”, explica Carmita, ao deixar claro que é preciso um equilíbrio entre esses neurotransmissores para a ativação do desejo sexual.
A cena a que a Carmita assiste hoje é semelhante ao que aconteceu em 1998, quando foi introduzido no mercado o Viagra, o primeiro inibidor da fosfodiesterase-5 utilizado no tratamento da disfunção erétil. “Naquela época, foi iniciado um trabalho de educação médica focado nos distúrbios sexuais que afligem os homens. Passados 17 anos, percebemos que é mais fácil para a população falar sobre a sexualidade masculina porque é sem tabus e ideias errôneas.”
Apesar do pioneirismo que brota com a pílula cor-de-rosa, é importante que a medicação não seja vista como um milagre. Não basta tomá-la para o desejo sexual vir à tona. “Em muitos casos, as mulheres vivenciam crise conjugal, têm autoestima comprometida e passam por outros conflitos que interferem negativamente na atividade sexual. Nesses casos, a medicação não é a solução”, explica a sexóloga Semíramis Prado, delegada da Regional Pernambuco da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana (SBRASH).
Na própria bula da flibanserina, já vem o aviso para médicos e pacientes: a medicação não é indicada para mulheres com uma condição psiquiátrica preexistente e com problemas no relacionamento. E mais: o Viagra feminino não é recomendado para o tratamento do desejo sexual hipoativo em mulheres que estão na pós-menopausa, tampouco para melhorar o desempenho sexual em quem não tem a disfunção e deseja fazer uso recreacional do produto. “Ainda é preciso considerar que a bebida alcoólica é contraindicada enquanto a mulher faz uso dessa medicação”, diz Semíramis. Ela também alerta em relação a efeitos colaterais que o produto pode causar, como tonturas, sonolência, náuseas, fadiga, insônia e boca seca.
O risco de todos essas consequências causadas pelo uso do medicamento leva os especialistas a orientarem sobre um detalhe: a flibanserina só deve ser prescrita depois de uma análise médica criteriosa, que dê o diagnóstico de desejo sexual hipoativo, que se torna mais comum com o avançar da idade, segundo as pesquisas coordenadas por Carmita Abdo. “Entre 18 e 25 anos, estima-se que 5,8% das brasileiras não têm interesse no sexo. Acima dos 60 anos, a prevalência chega a 19,9%”, diz a psiquiatra, que explica como vem esse diagnóstico: “O desejo sexual hipoativo é caracterizado por um desinteresse contínuo e que leva a um sofrimento pessoal. Não é uma condição de quem, uma vez por outra, não quer fazer sexo.” Por isso, a comunidade médica precisa considerar vários aspectos antes de prescrever a flibanserina.
Além disso, medidas adicionais devem ser tomadas para garantir a segurança da medicação. As pacientes não devem, por exemplo, dirigir ou se envolver em outras atividades que exigem muita atenção antes de completar seis horas após a ingestão do medicamento.
E é bom não confundir o desejo sexual hipoativo com a dificuldade de se atingir o orgasmo – para essa condição, a flibanserina não é indicada. “Sabemos que mulheres afetadas pelo desinteresse sexual também têm dificuldade em ter orgasmo, mas a medicação não resolverá isso”, reforça Semíramis. O efeito da flibanserina não é imediato. “As mulheres começam a perceber resultados entre três e quatro semanas após o início do tratamento. Passados alguns meses, elas ganham condição para dar sequência à prática sexual sem necessidade do medicamento”, finaliza Carmita Abdo.