Em discurso, João Paulo diz a deputados evangélicos que eles não falam por Deus nem são donos da verdade

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jamildo

Publicado em 22/04/2021 às 22:36
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O discurso foi longo mas vale a pena a leitura, pelo chamamento à razão.

João Paulo virou alvo da bancada evangélica por ter dado um voto contra o projeto que dizia que as igrejas eram essenciais e poderiam abrir mesmo na pandemia. Os deputados criaram uma solução intermediária, para que os evangélicos tivessem uma saída honrosa depois de terem feito uma grande campanha em suas igrejas. A saída negociada foi um a aprovação de um projeto substitutivo, que trazia o feito à ordem, garantindo o que o STF já havia dito na semana retrasada. A palavra final é dada pelo Executivo do Estado.

Na votação, contrário à matéria mesmo com a atenuação feita na comissão de Administração, o deputado João Paulo (PCdoB) reforçou o entendimento de que cabe ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de definir quais atividades são ou não essenciais em momento de pandemia.

“Não questionei, em momento algum, o papel das igrejas e da fé”, alegou. O voto contra foi acompanhado pelo mandato coletivo Juntas (PSOL).

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Fundamentalismo

João Paulo – Deputado Estadual (PCdoB)

Quem conhece minha trajetória sabe que comecei minha militância política no movimento de Igreja, na Juventude Operária Católica. Carrego comigo, mesmo nos trabalhos desta Casa, os valores fundamentais do cristianismo: o amor, o respeito ao outro, a opção de Cristo na defesa dos menos favorecidos. Valores aprendidos pela leitura da Bíblia, mas também pela admiração que nutri e nutro pelos exemplos de vida de figuras religiosas que me foram inspiradoras, como Dom Helder Câmara (tenho inclusive um filho de nome Helder em sua homenagem), amigos e companheiros como os padres Jorge Parissoto, Agostinho Preto, Henrique Cossar, Romano Zufferey, Adrien Jansen, Humberto Pluma, Petter Camilleri, Reginaldo Veloso.


A religião sempre teve para mim seu sentido pleno de religação entre as pessoas e delas com o divino. Ajuda, aos que creem, na construção de um sentido maior para nossas existências. Eis o que sempre esteve presente em minha vida e me influencia, tanto na visão de mundo quanto em minha maneira de conceber a política. No entanto, em nenhum momento, achei que minha concepção do divino deveria prevalecer sobre a do próximo. Minha vida de cristão não exclui a importância de outros livros sagrados nem me afasta daqueles que simplesmente não acreditam na existência de um deus ou de deuses. Procuro ser um cristão da diversidade, do Estado laico e da tolerância.


Vejo o movimento evangélico, por exemplo, sem generalizações rasteiras. Tenho profundo respeito por esses cristãos que seguiram a linha do protestantismo, sem a qual não teríamos alguns valores como a democracia, o republicanismo e, de certa forma, até mesmo a literatura ocidental. A Reforma Protestante de Lutero deu imensa contribuição ao modelo de sociedade moderna. Não haveria esse mundo que conhecemos sem o protestantismo. Nem democracia, nem republicanismo, nem liberalismo, nem individualismo, nem alfabetização, nem literatura.

Nada disso existiria sem a Reforma Protestante e o gesto libertador de Lutero. Lembrar da contribuição luterana à constituição da sociedade ocidental moderna é fundamental para entender porque precisamos repelir da política os falsos profetas que pretendem usar as palavras da bíblia como forma de intimidar adversários políticos. Qual foi, não por acaso, o gesto político mais importante e significativo de Lutero para a história? Foi fazer a tradução da Bíblia da língua dos sacerdotes (o latim) para o vernáculo (língua do povo), o alemão. Com esse gesto libertador de Lutero, que tornou a leitura da Bíblia acessível a todos com sua impressão, ele mostrava na prática que nenhum homem deve se arrogar a falar em nome de Deus e que, quem o faz, geralmente corre esse enorme risco de estar corrompendo os ensinamentos de Cristo.

Lutero traduziu a Bíblia para língua do povo e a Igreja Reformada fez um enorme esforço de alfabetizar os fiéis para que cada um pudesse ter o direito às palavras sagradas, sem intermediários maliciosos instalados como praga dentro da Igreja. A lição política histórica do protestantismo foi na prática uma forma de dizer não a aproveitadores da fé sincera das pessoas. Uma maneira, em suma, de mostrar que a corrupção que existia dentro da Igreja era gerada por homens que usavam seu privilégio (saber ler o latim) para subjugar os outros.

Hoje, infelizmente, temos que enfrentar situação semelhante dentro do próprio protestantismo. A história parece se repetir como uma farsa.

Nesse meio, também crescem os falsos profetas que pretendem usar as palavras da Bíblia como forma de impor costumes, intimidar adversários políticos e formar uma espécie de monopólio das ideias, como se houvesse um Ministério da Verdade, aos moldes do que encontramos na obra 1984, de George Orwell.

Senhor presidente, nestes tempos tão difíceis, o mundo assiste a um aumento crescente do conservadorismo e de fenômenos fundamentalistas religiosos que se expressam pela homofobia, a xenofobia, o anti-feminismo, o racismo, o negacionismo da ciência e toda sorte de discriminações e preconceitos, inclusive em nosso País e em nosso Estado, evidenciado recentemente por pregações em defesa de aglomerações em cultos e missas durante a pandemia, numa atitude que coloca o credo religioso de determinado grupo acima do valor supremo da vida. Aqueles que realmente acreditam na eternidade não deveriam se preocupar com uma interrupção tão necessária de seus rituais, por um breve período, uma vez que estariam dessa forma praticando um valor do cristianismo, que é a solidariedade com as outras pessoas. Já os líderes políticos que reivindicam permissão do governo para aglomerar, não estão defendendo seus fiéis, estão, ao contrário, atrapalhando o importante trabalho dos pastores e demais figuras religiosas de proteger suas comunidades.


Hoje, lamentavelmente, esse tipo de atuação tem crescido no Brasil de forma assustadora, a ponto de influir em decisões do governo e nos costumes usando a perspectiva da crença em um único Deus verdadeiro, o Deus representado pela Bíblia, para defender seus próprios interesses e visão de mundo, manipulando a interpretação de seus próprios textos e bases religiosas. Não podemos esquecer que existem dezenas de religiões no mundo e outros tantos livros com histórias diferentes, cada uma delas com um deus ou deuses também diversos daquele pregado pelo cristianismo. A espiritualidade e a conexão com o sagrado têm a amplidão do universo.

Portanto, eis um lugar de fala que reivindico e exerço agora de forma crítica e abraçado à sagrada essência do cristianismo que é o amor ao próximo. Uma visão do mundo espiritual em que não cabem mais leituras literais da Bíblia, cujas contradições são bem expostas na história que conto agora, de um fiel de Los Angeles, nos Estados Unidos, que se descobriu homossexual justamente depois de encontrar sua esposa nos braços de outro homem. Ele procurou seu pastor neopentecostal para perguntar se continuaria, mesmo assim, abrigado por sua igreja.

O pastor respondeu: “Meu caro irmão, de acordo com o livro do Levítico, no capítulo 20, versículo 13, está escrito: “Se um homem dormir com outro homem, ambos cometem uma abominação”. Então, meu irmão, a Igreja só pode acolhê-lo se você renunciar a essa tentação do diabo”. Na semana seguinte, o pastor foi obrigado pela Justiça do Estado a ler a resposta do cristão: “Caro pastor, agradeço sua resposta porque, ao citar o capítulo 20 do Levítico, o senhor me fez ler todo o capítulo e isso me ajudou muito. De fato, o texto diz que um homem não pode dormir com outro homem, mas diz também no versículo 10 que eu posso apedrejar até a morte a minha mulher adúltera e o homem que adulterou com ela. Assim sendo, como eu terei dificuldade de fazer isso hoje em dia em uma praça de Los Angeles, decidi fazer na sua Igreja que cumpre a Bíblia tão fielmente. Por favor, o senhor prepare as pedras que no próximo sábado às nove da manhã, eu levarei a minha mulher adúltera e o seu amante nus e amarrados para serem apedrejados por mim e por todos os fiéis de sua Igreja. Descobri também no capítulo 21 do Êxodo que posso vender minha filha desobediente. Nos tempos em que vivemos, na sua opinião, qual seria o preço adequado? Tenho um vizinho que insiste em trabalhar aos sábados. O livro de Êxodo 35:2 claramente estabelece que quem trabalha aos sábados deve receber a pena de morte. Isso quer dizer que eu, pessoalmente, sou obrigado a matá-lo?”.

Creio em Deus, tenho formação cristã, e vejo a espiritualidade como manifestação da liberdade, capaz de entender o mundo terreno e suas demandas; atenta às questões da ciência e da lógica, num processo que também evoluiu no tempo, para nos dar a possibilidade de refletir e dialogar honestamente com todas as correntes do cristianismo e de outras religiões, deixando de lado polêmicas estéreis que têm mais a ver com a extrema-direita política do que com a essência do sagrado.

Dessa forma, como cristão, vejo a restrição de cultos e missas nas igrejas e templos em fases mais críticas da pandemia como um comportamento fraterno, de amor ao próximo, de preocupação com a comunidade e em acordo com a imagem de um Jesus Cristo que pregou a compaixão, a piedade e a partilha.

Os cuidados espirituais podem e devem continuar na medida do cuidado com a vida coletiva, com o devido evitamento das aglomerações. Estamos vivendo uma hora de urgência, frente ao coronavírus, e creio que é a vez do diálogo e da procura da conciliação, de um ecumenismo que não pode nos faltar em momentos de emergência sanitária como a que nos encontramos agora. Uma situação em que o sacrifício é exigido de todos, inspirado no sacrifício maior de Jesus, na boa convivência entre os diferentes e no respeito ao pensamento que não induz a um modelo teocrático, um perigo sempre presente em períodos autoritários da História, como é agora no Brasil, sob o patrocínio do próprio presidente da República e de sua pregação do pensamento único, que não pode contaminar o ambiente do espírito. A liberdade de culto, que defendo por princípio e opção de vida, que inclusive está garantida na nossa Constituição, não pode ser usada contra o direito à vida.


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