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Poderes e políticos 'não vão simplesmente esquecer', diz Lavareda após recuo de Bolsonaro

Cientista político e sociólogo Antonio Lavareda avalia que movimento do presidente não deve ser suficiente para conter mobilização contra seu governo

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Jamildo Melo

Publicado em 10/09/2021 às 13:00 | Atualizado em 10/09/2021 às 13:07
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Leia os principais trechos da entrevista ao Estado de S.Paulo 

Como o sr. interpreta a nota do presidente, atribuindo as declarações ao 'calor do momento' e sinalizando um recuo?

Provavelmente, ele fez um balanço dos resultados do 7 de Setembro e avaliou que deu tudo, ou quase tudo, diferente do pretendido. Deu errado. No dia seguinte, acordou com uma base política menor, com a hipótese do impeachment ganhando tamanho, com o Judiciário reagindo num tom excepcionalmente elevado e com os agentes do mercado demonstrando na Bolsa e no dólar que havia sido desastroso para a economia, já às voltas com inflação e desemprego altos e a crise energética, trazendo desesperança à retomada. Resultado: vários passos atrás, com a ajuda decisiva do ex-presidente Michel Temer, cujo perfil avulta nas crises.

Ainda é possível recuar? Esse gesto muda a reação dos partidos e do Judiciário?

Recuos de atitudes como aquela, de agressão aos limites constitucionais, são sempre saudados. Recebidos com alívio. A República estava com a respiração em suspenso, mergulhada na incerteza. Foram 48 horas de muita tensão e ansiedade. Mobilizou-se um notável conjunto de forças dispostas à resistência diante do que pareceu ao País uma clara ofensiva autocrática. Levantada a bandeira branca, os espíritos relaxam em certa medida.

Mas não se imagine que os Poderes e os políticos vão simplesmente esquecer o que passou.

Quanto ao presidente, lhe compete agora retomar a agenda do governo e pô-la em sintonia com os problemas e as crises reais que assolam o País. Seu desafio pessoal será administrar sua natureza belicosa para evitar recidivas e, em direção contrária, tentar diminuir a grande frustração dos seus seguidores aos quais vendera a ideia de que a terça-feira marcaria a "segunda independência" do Brasil, mas, nesta quinta, estupefatos assistiram ao recuo espetacular do seu líder. Partidos e Judiciário vão dar tempo ao tempo. Aguardar para ver o quanto dura o "Bolsonaro amante da Constituição".

O que os últimos dias apontam para as consequências da mobilização de 7 de Setembro?

Independentemente do recuo, o ato inaugurou uma nova conjuntura. Isso envolve um reposicionamento dos atores, um certo reembaralhamento das cartas do jogo político. Nessa nova fase, pelo menos no seu início, o presidente começa politicamente enfraquecido. A radicalização não despertou o medo que se pensava que poderia imprimir no restante da sociedade política, nos outros Poderes. Pelo contrário. Temos agora um processo em que os Poderes e os atores politico-partidários, através de diálogo, já estão elaborando suas estratégias e táticas para bloquear esse ‘passo adiante’ do presidente, que nitidamente colocou a possibilidade de ultrapassar os limites constitucionais.

É preciso levar em conta que, quando o presidente diz que descumprirá decisões judiciais, ele está contribuindo de forma extremamente grave para a insegurança jurídica na sociedade. Tudo que os agentes econômicos mais prezam – porque é vital na condução dos negócios, na sobrevivência das empresas – é segurança jurídica. Se o presidente diz que pode não cumprir as leis, que se pode escolher as decisões judiciais que são cumpridas ou não, o que vai impedir um cidadão comum de seguir esse exemplo? Estaremos no terreno do salve-se quem puder. Ou na formulação de Hobbes, de volta ao estado de natureza.

Há impactos dessa última semana para a disputa eleitoral?

Em certa medida, o pronunciamento do presidente no 7 de Setembro interrompeu a campanha eleitoral dos outros candidatos. De repente, eles perceberam que não se trata de discutir posicionamento em relação a 2022, trata-se de tentar conter o ânimo – que se mostrou autocrático – do presidente. Ele ajuda a produzir unidade de atores que, até a véspera, estavam divididos naturalmente, discutindo e disputando apoio eleitoral, a viabilidade de uma terceira via, etc. Ele produziu uma aglutinação de forças políticas, contribuindo para unificar as oposições que estavam naturalmente divididas pelas expectativas eleitorais.

Essa aglutinação é automática? Sabemos que há partidos que ainda discutem a conveniência de ter Bolsonaro enfraquecido nas eleições.

Não. Está longe de ser automática, ainda não ocorreu, nem asseguro que isso vá ocorrer, Eu disse que o presidente contribuiu de forma importante para isso. Para as manifestações do próximo fim de semana, vemos que os organizadores já abriram a latitude para outros campos ideológicos, e isso é decorrência do 7 de Setembro. O presidente Bolsonaro fez soar a ‘corneta’ da necessidade de unir as forças de oposição ou, se não unidade, pelo menos diminuir bastante o grau de conflito entre elas para poderem, unidas, resistirem a esse avanço do presidente.

E quanto à proteção que ele ainda conta no Congresso contra o impeachment, principalmente com o Centrão? Deve durar?

Como eu disse, é o marco inicial de uma nova conjuntura. Até para entender toda a dimensão do recuo, de que forma ele será convincente. Isso não se estrutura em 24h, 48h ou 72h. É um processo lento, evolutivo. A olho nu, qualquer observador vai identificar que nosso processo de crise vai numa escalada. O Congresso vai se comportar como grande intérprete das principais sinalizações da sociedade. Vai estar atento às manifestações de rua, às pesquisas, à evolução do diálogo entre os candidatos, organizações da sociedade civil e também dos partidos. O Congresso vai muito mais ser espelho dos movimentos da sociedade do que liderá-las, tomar iniciativa. Se a economia continua patinando, se as ações do presidente são obstáculo para uma retomada mais vigorosa do Brasil, se há uma paralisia decisória, aí o Congresso vai adotar os caminhos que possam resolver a crise. Dos três Poderes, naturalmente o Congresso tem essa capacidade.

Parte do movimento de caminhoneiros permaneceu nas estradas mesmo após o apelo do presidente para que a mobilização se encerrasse. Apesar de organizada por bolsonaristas, a paralisação não arriscava prejudicar os resultados econômicos do próprio governo?

Aparentemente, esse estímulo à paralisação não foi uma iniciativa do governo, mas do próprio presidente e do seu círculo mais próximo. Tanto que o ministro Tarcísio (de Freitas, da Infraestrutura) foi a campo e conseguiu que o presidente gravasse um áudio para desestimular a continuidade do movimento.

Ao governo, não interessa um movimento que prospere em causar pânico na população, com filas nos postos de gasolina, nem o óbvio impacto de tudo isso na inflação. A busca desordenada e desesperada por combustível obviamente leva alguns a se aproveitarem da situação e ao aumento dos preços. Tudo isso tumultua a atividade econômica, deprime bastante o interesse dos investidores. Ou seja, prejudica a possibilidade de uma retomada econômica mais rápida, a atração de investimentos e que tenhamos no horizonte um PIB (Produto Interno Bruto) com resultado mais favorável no ano que vem.

O Brasil está com a inflação entre as três maiores da América Latina, com os preços das empresas da Bolsa bastante depreciados na comparação com o resto do mundo, com uma taxa de desemprego que se aproxima dos 15 milhões, afora uma dezena de milhões com empregos precários. Tudo isso só se vê agravado por um movimento ‘paredista’, de cunho político, como esse dos caminhoneiros. Isso pode interessar o governo? Óbvio que não. Nesse momento, o projeto do presidente, do seu círculo próximo e de sua família, descola dos objetivos do seu próprio governo.

Agrava-se a crise político-institucional que, por sua vez, evolui pelas mãos da crise econômica. Nessa ciranda, o País vai regredindo a olhos vistos. O nome disso é escalada da crise.


O que esse episódio diz sobre o controle que o presidente tem sobre sua própria base de apoio na população?

Isso mostra que as pessoas – no caso os caminhoneiros – sob estímulos contraditórios da mesma fonte, ficam momentaneamente aturdidos. Vai levar algum tempo para que encontrem um caminho de coerência. Se o presidente e seus apoiadores estimularam o movimento, e em outro momento ele dá uma voz contrária, isso leva algum tempo para ser devidamente processado, assimilado. Mas acredito que os caminhoneiros vão se curvar ao bom senso, não vão continuar participando de um movimento cujo maior beneficiário acabou de solicitar a eles que desmobilizassem.

A radicalização do presidente até aqui faz sentido no atual contexto de queda nas taxas de aprovação? As pesquisas explicam a escolha por elevar a tensão?

As pesquisas, por si só, não explicam. No momento em que conversamos, há dezenas de países com presidentes e primeiros-ministros que enfrentam avaliações mais severas da população e nem por isso estão em praça pública promovendo ou aguçando uma crise política. É preciso que a gente entenda a raiz dessa crise que o Brasil vive hoje. A melhor descrição de crise política nesse contexto continua a ser uma definição antiga, do século 17, de John Locke: a crise política decorre basicamente de uma violação da confiança. É o governante que rompe o espírito do pacto social e agride a sociedade política. Ou seja, esse governante tenta substituir as vias legislativas por regras e leis formuladas por ele próprio. Veja só, estou falando de uma descrição clássica que se aplica em toda medida. Parece que quando John Locke escreveu isso no século 17 estava pensando que um dia se iria adequar esse modelo ao presidente Bolsonaro.

Ou seja, os níveis de rejeição que ele tem enfrentado importam pouco?

Governantes, quando enfrentam avaliações baixas, concentram-se em manter seus adeptos e tentam resgatar antigos admiradores. Se possível, tentam ampliar o número de adeptos para vencer as próximas eleições – sejam candidatos à reeleição ou não. É essa a estratégia de um presidente numa situação difícil. Jamais comete atos que estreitam essa base política, e jamais deflagra ações que o deixem apenas com aquela porção da sociedade que já o aprova. O presidente Bolsonaro, segundo a média das pesquisas, perdeu mais de um terço (do apoio). Segundo algumas pesquisas, perdeu em torno de 40% dos eleitores do primeiro turno de 2018. O esforço para recuperar esses eleitores é impossível de ser reconhecido nessas posturas e iniciativas do presidente. Quem analisa esses atos e as posturas do 7 de Setembro fica imaginando que o projeto do presidente não pode ser um projeto de vencer as eleições de 2022.

Em primeiro lugar, porque em todo o seu discurso, em nenhum momento ele remeteu aos maiores problemas do País, como a crise sanitária, a questão econômica, e dentro disso a inflação e o desemprego, ou a educação. Todo o alvo do discurso presidencial foi dirigido contra o Poder Judiciário, basicamente. Na véspera, substituiu uma lei do Legislativo por uma medida provisória, que joga fora sete anos de elaboração do Marco Civil da Internet. Ali não há estratégia eleitoral – até porque quem está interessado no resultado da eleição, não agride com palavras que escapam ao decoro, um magistrado que se sabe de antemão que será o presidente da Corte eleitoral. Qual candidato, em qualquer município brasileiro, com um ano de antecedência agride naquele tom o juiz que vai presidir as eleições? Isso não existe. Se há estratégia , com certeza não é pautada para vencer nas urnas as eleições de 2022.

 

 

 

 

 

 

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