‘O que vou comer amanhã?’: a luta contra a fome se estende ao Natal no Brasil
Quase 50 milhões de brasileiros "deixaram de comer por falta de dinheiro ou tiveram uma redução significativa na qualidade e quantidade de alimentos ingeridos" entre 2018 e 2020, aponta relatório
Sorridente, Rita Maria de Souza, 59 anos, abre a cesta básica que ganhou da campanha Natal sem Fome e conta as doações: três quilos de arroz, três de feijão, um litro de óleo, um quilo de farinha, macarrão e açúcar. Nenhuma proteína. Mas "esse pouco que recebo ainda vai dar para dividir com os outros", diz à AFP.
O relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2021”, elaborado por várias agências das Nações Unidas, aponta dados alarmantes: quase 50 milhões dos 213 milhões de brasileiros, inclusive crianças, “deixaram de comer por falta de dinheiro ou tiveram uma redução significativa na qualidade e quantidade de alimentos ingeridos” entre 2018 e 2020 - um aumento de 5,2% em comparação com o período anterior analisado, entre 2014 e 2016.
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Desempregada há seis anos, Rita contava apenas com o auxílio de R$ 100,00 do agora extinto Bolsa Família para passar o mês.
Os recursos escassos dificultam que ela siga a dieta que precisa para controlar a diabetes. “Precisava de uma alimentação saudável, mas com o que ganho, não dá”, lamenta.
Rita, uma mulher negra e com problemas de locomoção provocados pela doença, mora sozinha em uma casa pequena de tijolos no alto do Morro do Garibaldi, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Viúva há três anos e com um filho falecido há cinco, tem outra filha de 38, duas netas de 22 e 24, um bisneto e a família está prestes a aumentar: ela relata, empolgada, que a neta mais velha está grávida de gêmeos.
Para se sustentar, depende quase exclusivamente das doações da ONG “Amac”, uma das entidades assistidas pela campanha Natal sem Fome, da organização Ação da Cidadania.
É Jeferson Ribeiro, um dos fundadores da Amac, quem busca a cesta básica e leva até a casa de Rita. Ela o recebe com um abraço apertado e, entre muitos agradecimentos, suspira, aliviada.
Natal sem Fome
Depois que enviuvou, Rita costuma passar o Natal sozinha ou com as irmãs que moram perto dela. Os alimentos que recebe ainda vão ajudar a montar uma ceia pequena.
Essa situação é comum a muitas famílias brasileiras. Conforme o fim do ano se aproxima, várias organizações de todo o país se mobilizam para prestar alguma assistência a pessoas em situação vulnerável durante as festas.
É o caso da campanha Natal sem Fome, da ONG Ação da Cidadania, fundada em 1994 e que teve uma pausa em 2007, voltando à ativa dez anos depois.
Neste fim de ano, a campanha distribuiu em todo o país 1.500 toneladas de alimentos, o equivalente a quase oito milhões de refeições. Só no Rio de Janeiro, foram entregues 30 mil cestas básicas.
"Retomamos o Natal sem Fome em 2017 porque percebemos um aumento da fome em quem atendemos e desde então a ação só vem crescendo", relata o diretor-executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo “Kiko” Afonso.
"Carne, só na televisão"
Marcado por imagens chocantes nos últimos meses de pessoas recorrendo a ossos para se alimentar, o país enfrenta um sério agravamento da miséria.
Implementado em 2003 pelo governo do ex-presidente Lula (PT), o programa Bolsa Família tirou mais de 3,4 milhões de pessoas da pobreza extrema em 2017, segundo estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em novembro deste ano, foi extinto pelo governo Bolsonaro (PL) para implementação do Auxílio Brasil. Rita, assistida pelo programa, afirma que ainda não recebeu o novo auxílio.
"A partir de 2016, começou uma redução drástica das políticas de apoio à segurança alimentar. É importante lembrar que o governo Bolsonaro destruiu o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Você pega a política pública que tá dando certo e simplesmente destrói”, explica Rodrigo.
"Em 2014, quando o Brasil saiu do mapa da fome da ONU, tínhamos mais ou menos 4,5 milhões de brasileiros nessa situação. Em 2020, chegamos a quase 20 milhões", acrescenta.
Também assistida pelo Natal sem Fome, a peruana Maria Elena Huertas Rosales, 50, moradora de Nova Iguaçu, contará apenas com cestas básicas para a ceia com seus conterrâneos. Ela se mudou para o Brasil em 2009 na esperança de uma vida melhor.
“Com a pandemia, começamos a ter uma única refeição no dia porque as coisas estão muito caras”, lamenta essa costureira. "Carne eu só vejo na televisão. Sempre pensamos ‘o que vou comer amanhã?’"
Para o diretor-executivo da Ação da Cidadania, se todas as políticas públicas contra a fome "estivessem sendo implementadas, não teríamos uma população passando fome e pegando osso no meio da rua".