O que se sabe sobre o caso da criança vítima de estupro que teve aborto negado
A Justiça de Santa Catarina negou que uma criança, de 11 anos, vítima de estupro e grávida de 29 semanas, realizasse um aborto autorizado. O caso ganhou repercussão nacional nessa segunda-feira (20)
Com Estadão Conteúdo
A Justiça de Santa Catarina negou que uma criança, de 11 anos, vítima de estupro e grávida de 29 semanas, realizasse um aborto autorizado. O caso foi divulgado pelo The Intercept Brasil e Portal Catarinas nessa segunda-feira (20).
Em despacho expedido em 1º de junho, a magistrada Joana Ribeiro Zimmer, então na 1ª Vara Cível de Tijucas, a 50 quilômetros de Florianópolis, decidiu pela permanência da criança em um abrigo com o objetivo de mantê-la afastada do possível autor da agressão sexual e também para impedir que a mãe da menina, responsável legal pela filha, levasse a cabo a decisão de interromper a gravidez.
"Se no início da medida protetiva o motivo do acolhimento institucional era a presença de suspeitos homens na casa, o fato é que, doravante, o risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê", escreveu Joana Ribeiro Zimmer.
Por envolver menores de idade, o caso segue em segredo de Justiça. No despacho, a juíza defendeu a continuidade da gestação por parte da criança. Ela citou que o aborto deve ser realizado até 22 semanas de gravidez ou o feto atingir 500 gramas.
A juíza se manifestou ainda favorável a manter a gravidez independentemente de a gestação provocar riscos à menina.
"E ainda que feita a retirada do bebê no caso de risco concreto para a gestante, por qual motivo seria descartada a vida do bebê, que tem mais de 22 semanas e não é mais um conjunto de células, um bebê humano completo?", questionou.
O caso ganhou repercussão nacional nesta segunda-feira (20) com a divulgação da gravação de uma audiência de 9 de maio, em que mostra a defesa da magistrada à ideia de a vítima do estupro não interromper a gravidez - desejo manifestado no vídeo pela criança e pela sua mãe, responsável legal pela filha.
Juíza sugeriu à criança vítima de estupro a continuidade da gravidez
Na gravação, Joana sugeriu à garota a continuidade da gravidez por mais algumas semanas para que o parto fosse feito e o bebê fosse entregue para outra família.
"Quanto tempo que você aceitaria ficar com o bebê na tua barriga para a gente acabar de formar ele, dar os medicamentos para o pulmãozinho dele ficar maduro para a gente poder fazer a retirada para outra pessoa cuidar?", perguntou a juíza.
A menina responde: "Eu não sei."
A juíza, porém, insiste: "Se a tua saúde suportasse [a gestação], tu suportaria ficar mais um pouquinho com o bebê? Mais duas ou três semanas?"
A garota então consente. "Sim", responde.
Já em um diálogo direto com a mãe, a juíza afirma que existem cerca de 30 mil casais que "querem o bebê". "Essa tristeza para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal", disse a magistrada. "É uma felicidade porque eles não estão passando pelo o que eu estou passando", respondeu a mãe da criança.
Já na decisão, a magistrada se apoiou nas definições de aborto estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). "Lembro que vigora no Brasil o Marco Legal da Primeira Infância, que deixa clara a proteção do bebê desde a gestação, daí o fortalecimento legal da interpretação da autorização do Código Penal pela literalidade da palavra 'aborto' lá contida, como conceito que, segundo a entidade, é considerado apenas até 22 semanas ou 500g do bebê".
Contudo, a OMS não menciona os limites de duração da gestação nas suas novas diretrizes sobre o aborto divulgadas em março. A organização, no entanto, enfatiza que "a gravidez pode ser interrompida com segurança, independentemente da idade gestacional", e afirma ainda que negar um aborto por causa do tempo da gestação "pode resultar na continuação indesejada da gravidez", algo que seria "incompatível com requisito no direito internacional dos direitos humanos".
Corregedoria investiga caso de juíza que impediu aborto de criança estuprada
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina afirmou que sua corregedoria vai investigar o caso. "A Corregedoria-Geral da Justiça, órgão deste Tribunal, já instaurou pedido de providências na esfera administrativa para a devida apuração dos fatos", disse o TJSC, em nota.
A juíza Joana Ribeiro Zimmer deixou o caso após ser promovida. A promoção foi confirmada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) no último dia 15 - antes, portanto, da repercussão do caso. Desde a última sexta-feira (17), ela não faz mais parte da comarca de Tijucas, onde corre o processo.
"Estamos lutando para essa interrupção da gestação. Primeiro, porque a criança é assistida por lei. Ela está no enquadramento do aborto legal, por ser vítima de violência e por correr riscos de morte", afirmou a advogada Daniela Félix, que representa a família da vítima. "A gente tem, no Brasil, três casos de aborto que independe do tempo de gestação. Nesse caso, estamos amparados por dois (risco à saúde da gestante e estupro) - o terceiro caso seria o de anencefalia", explicou a advogada.
Em que situações o aborto é permitido?
Conforme o artigo 128 do Código Penal, não se pode punir o aborto quando: não há outro meio de salvar a vida da gestante, se a gravidez resulta de estupro, ou se o aborto é precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal.
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) ampliou as condições de interrupção da gravidez ao definir pela não criminalização da decisão de a grávida abortar fetos anencéfalos.
"O procedimento de interrupção da gestação é completamente legal", afirma Daniela. Se a mãe, que é a representante legal, está se manifestando pela interrupção da gestação, "o Estado tem de cumprir e dar autorização para essa interrupção da melhor forma possível para a criança de 11 anos".
"Pela idade, a criança não tem capacidade postulatória ou poder de decidir em qualquer ação judicial. Dá pra ver como os atos indicam erros, condutas que podem ser questionadas. Não tem como uma criança saber se vai continuar com a gestação por duas semanas. Quem decide isso é a mãe", declarou Daniela Félix.
O hospital que negou aborto
A conversa com Joana Ribeiro Zimmer aconteceu após a vítima e a mãe recorrerem ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago (HU), de Florianópolis, no começo de maio, para buscar a interrupção da gravidez.
Na época, em 5 de maio, a gestação estava com 22 semanas e três dias, o que impediu os médicos de realizarem o procedimento, uma vez que a norma no hospital é que o aborto seja feito com até 20 semanas de gestação. Mesmo assim, o HU realizou exames na criança e pediu autorização judicial para interromper a gravidez
Dias depois, de acordo com a reportagem do The Intercept e do Portal Catarinas, o Ministério Público de Santa Catarina entrou com ação cautelar pedindo pelo acolhimento institucional da criança, e que deveria retornar à família somente depois de não estar mais em situação de perigo dentro de casa.
Nos dias 17 e 23 de maio, os médicos do Hospital Universitário foram ouvidos pelo Ministério Público sobre o caso em audiências realizadas no Fórum de Tijucas.
O jornal O Estado de S. Paulo teve acesso também à descrição dos depoimentos dos profissionais, que alegaram que a criança estava, até o momento, apresentando sinais de uma gravidez sem riscos.
"Das audiências em referência, a partir dos relatos médicos, o que se pode extrair, de maneira enfática, é que, a par do risco geral decorrente de uma gravidez em tenra idade, a gestação está se desenvolvendo de forma normal, dentro de um limiar de absoluta segurança", escreveu em 25 de maio a promotora Mirela Dutra Alberton, da 2ª Promotoria de Comarcas de Tijucas, no pedido judicial de interrupção da gestante, anexado nos autos do processos, documento que a reportagem também teve acesso.
Ela ressaltou, porém, que o único consenso apresentado pelos médicos é que a criança, então no final do mês passado, com 23 semanas de gestação, não se encontrava "em situação de risco imediato". Mas a promotora fez uma ressalva: "Com o avançar da gravidez, a tendência natural é que o risco geral se acentue e possa evoluir para riscos específicos, conforme exposto pelos profissionais".
De acordo com os médicos, os riscos à vida da vítima estão relacionados com a duração da gestação, e também com os procedimentos de parto e pós-parto a que uma criança de 11 anos será submetida. O descolamento de placenta e sangramento provocados pelo trabalho de parto prematuro e atonia uterina (falta de contrações do útero) após o nascimento do bebê foram alguns dos problemas citados pelos médicos.
O HU não respondeu aos questionamentos da reportagem do Estadão até o fechamento do texto.
Vítima de estupro de 11 anos recebe autorização para deixar abrigo
A menina vai poder voltar para casa por causa de a uma autorização concedida pela desembargadora Cláudia Lambert de Faria, nesta terça-feira (21). A criança estava em um abrigo de acolhimento em Tijucas, município localizado a 50 quilômetros de Florianópolis. A medida protetiva foi um pedido do Ministério Público do Estado para distanciá-la do possível agressor, que convivia com a menina na mesma residência.
"Assim, visando o bem estar da infante (da menina), durante esse momento sofrido de uma gravidez indesejada e inoportuna, e considerando o seu manifesto desejo de estar próxima à mãe, com a qual mantém forte vínculo afetivo, não há razão que justifique, no caso, a manutenção do acolhimento institucional", escreveu a desembargadora Cláudia Lambert em decisão obtida pelo Estadão.
No texto, Lambert considera que manter a menina longe de casa, em um estado gestacional, poderia levá-la a ter problemas de saúde mental, física e fisiológica com potenciais para serem fatais, tanto para a criança quanto para o bebê em gestação. "Dessa forma, com a companhia e os cuidados da mãe, no aconchego do lar, a agravante (a menina) terá melhores condições psicológicas para enfrentar este momento tão delicado de sua vida", escreveu a desembargadora.
A decisão da desembargadora foi tomada mediante um agravo de instrumento feito pela defesa da mãe, que pedia o fim da tutela e do acolhimento da criança por parte do Estado e do acolhimento, e exigia o retorno da menina para a casa. A decisão foi autorizada e comunicada ao juízo da Vara de Infância da Comarca de Tijucas, que no final da tarde cumpriu a decisão do Tribunal de Justiça e desacolheu a criança.
De acordo com a advogada que representa a família da menina, Daniela Félix, a decisão de Cláudia Lambert de Faria foi correta, sobretudo quando a desembargadora cita que o caso deveria ser analisado na Vara Criminal e não na Vara da Infância, como estava sendo feito. "Não compete à Vara da Infância tergiversar sobre a temática da legalidade do aborto", disse a advogada, indo ao encontro do que foi proferido por Lambert na decisão: "Lembrando que a questão relativa à interrupção ou não da gravidez não é matéria afeita a esse juízo, porque constitui temática que compete ao juízo criminal"
De acordo com Daniela Félix, no final da tarde desta terça-feira, a defesa impetrou um habeas corpus no Tribunal de Justiça para que seja determinado o abortamento legal da criança.
Com a palavra, a juíza Joana Ribeiro Zimmer
Em nota enviada à imprensa, por meio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a juíza Joana Ribeiro Zimmer disse que não vai se manifestar sobre a conduta na audiência e que a gravação foi "vazada" de "forma criminosa".
"Não só por se tratar de um caso que tramita em segredo de Justiça, mas, sobretudo, para garantir a devida proteção integral à criança", alega. A manifestação afirma ainda que "seria de extrema importância que esse caso continue a ser tratado pela instância adequada, ou seja, pela Justiça, com toda a responsabilidade e ética que a situação requer e com a devida proteção a todos os seus direitos e garantias constitucionais".