sem teto

Amor que sobrevive entre os casais moradores de rua

Passam a noite insones, com medo de roubo e da morte. Como tantos outros casais, também são unidos pela solidão e carência

Fabiana Moraes
Cadastrado por
Fabiana Moraes
Publicado em 07/06/2014 às 17:02
NE10
Passam a noite insones, com medo de roubo e da morte. Como tantos outros casais, também são unidos pela solidão e carência - FOTO: NE10
Leitura:

Ver o sol nascer, sentir a chuva, andar nas ruas, desfrutar a sensação de não ter uma rotina diária. Aquilo que pode soar como regenerador e libertador para muitos, especialmente quem circula com jornada de trabalho definida, cartão de crédito e pausa para férias, tem efeito inverso para quem não escolhe quando e onde experimentar o que é celebrado como “verdadeira liberdade”. Cleidson José da Silva, 29 anos, é um exemplo: todos os dias, por volta das 5h, vê o céu do Centro do Recife tingir-se de rosa e laranja. É o fim de outra noite dormindo na rua, situação que ofusca qualquer beleza gratuita e natural que ele eventualmente consegue acessar. “Mas nem o amanhecer do dia é bom. Você pensa logo em como vai ser... tem gente que diz ‘Graças a Deus, é outro dia.’ Eu fico quieto, torcendo para não ser pior que o de ontem.”

Glauce Cavalcanti, 30, os últimos três passados na prisão, acorda ao lado de Cleidson nessas auroras de coração apertado. Está sentada no papelão – que era também a cama do casal – quando perguntam: “É possível apontar alguma coisa boa na vida da rua?” Ouve em silêncio a resposta desesperançada do companheiro. Espera sua vez, e é aí que ela coloca algum colorido na realidade sem perfume e suavidade que ambos vivem. “Pra mim, na situação que estou passando, a melhor coisa de estar nas ruas foi ter conhecido ele. É meu amigo, meu companheiro. Minha mãe, meu pai. É a única coisa boa: é ele.”

Fazia apenas uma semana que Glauce e Cleidson haviam ficado juntos pela primeira vez, o Cais de Santa Rita como cenário do romance, quando ela foi presa em 2011. Levou R$ 3 mil e um celular de uma japonesa nas imediações do Forte do Brum, no Centro. “Eu era muito viciada em crack.” Cerca de 40 minutos após o assalto no qual ela usou uma faca, um carro da polícia a parou. A vítima estava a bordo. Passou dois anos e oito meses encarcerada. Quatro dias depois de sair, procurou Cleidson, ou Matuto, como ele é mais conhecido. O rapaz, que esteve cinco anos e nove meses preso por matar a esposa em 2004, estava se relacionando com outra mulher. Justifica: “Não procurei Glauce antes porque não tinha seu nome completo”. Ao reencontrar a ex-quase namorada, decidiu retomar a relação. A antiga parceira não perdoou: sabia que ele guardava as roupas em uma barraquinha perto do Parque 13 de Maio, saída clássica para quem não tem vida cercada por paredes, pias e travesseiros. Foi lá e queimou todas as poucas peças do agora ex-companheiro.

O desejo sexual só pode ser saciado em becos escuros, sob pontes e atrás de muros de terrenos baldios. Escondem-se tanto dos olhares alheios quanto do Código Penal Brasileiro

Desde então, os dois, ambos há cinco anos sem casa para morar, passaram a dividir o papelão e um lençol sob as marquises do Teatro Santa Isabel, onde dormem após passar boa parte do dia no Centro Pop da Rua da Glória, um dos dois espaços bancados pela prefeitura e governo federal destinados à população de rua. Ali, recebem café da manhã e almoço (são 30 refeições, cada horário). A partir das 17h, quando o Centro fecha as portas, caminham pela cidade e chegam até a Praça da República, onde, na copa de uma árvore, escondem os dois travesseiros, os maiores confortos materiais que guardam consigo. Outros casais aparecem para disputar o melhor lugar e acomodam-se justamente na entrada de mármore do prédio neoclássico construído há 164 anos sob o comando do francês Louis Léger Vaulthier, uma espécie de bálsamo para uma burguesia local que adoraria ser Europa. Outro “conforto” é a presença, no entorno, de policiais militares responsáveis também pela segurança do Palácio do Governo, palco maior do poder do Estado.

Essa vigilância periférica, no entanto, não garante um sono tranquilo: são bastante comuns os furtos entre moradores de rua. Dias antes de conversar com a reportagem, Cleidson havia perdido a mochila com documentos e algumas roupas. “A gente tava abraçadinho, pegou no sono e aí foi assaltado”, conta ele. A intimidade do abraço, aliás, é uma das poucas que permitem-se ter quando estão ao lado dos outros: o desejo sexual só pode ser saciado em becos escuros, sob pontes e atrás de muros de terrenos baldios. Escondem-se tanto dos olhares alheios quanto do Código Penal Brasileiro, que, no artigo 233, define a prática sexual pública como ato obsceno (a pena é de detenção de três meses a um ano ou multa). Não é difícil, no entanto, serem flagrados. Mas estão blindados cruelmente pela própria situação. “O povo não mexe, sabe que somos moradores de rua, eles têm é medo da gente.”

Como em todos os grupos, há, entre os que não possuem casa para morar, uma ética própria: uma delas é a de proteger a companheira. A ausência dessa prática gera críticas e era justamente isso o que entristecia, na noite em que a reportagem acompanhava o aninhamento de Cleidson e Glauce sob a marquise do Santa Isabel, a jovem Anna Kelly, 21. Seu namorado naqueles dias, Alex Brasil, 33, havia conseguido um pedaço de papelão para dormir, mas não compartilhou com ela. Logo, as críticas começaram a aparecer. “Um dia desses ele comprou uma coxinha e nem deu um pedaço a ela”, disse Cleidson, que se orgulha de “tomar conta” de Glauce. “Daqui pra de noite eu desenrolo uma pinça pra tu”, disse ele quando ela começou a reclamar que precisava depilar as sobrancelhas. O caso é que Alex, rapaz bonito que circula principalmente no bairro da Boa Vista e adjacências, não consegue se acostumar a sua realidade de agora: ex-presidiário e vivendo nas ruas, ele vem de uma família de classe média. Foi expulso de casa após vender a geladeira para comprar droga. Tempos depois, foi pego assaltando ao lado de um menor. Em dezembro de 2013, foi solto. “Fiquei pouco tempo. Se a família tem dinheiro para pagar advogado, tira logo você de lá. Quem se f* é quem é pobre.” Mas a pobreza, ele sabe, é a sua condição de agora. Talvez seja essa consciência que o faça ainda mais individualista, que o faça não encarar um namoro com Anna: “A minha correria eu faço só”. Por outro lado, a rua é um bicho que assusta e sublinha a necessidade humana de sentir o outro ao seu lado. Alex é como a maioria de nós: precisa ter alguém por perto. “Às vezes nem amor existe, mas você é tão solitário que fica com a pessoa. Eu mesmo tô com Anna há uma semana. Não, não, faz uns 15 dias...ou não faz nenhuma semana, eu acho.”

Ele disse pra senhora que gosta de mim?

perguntou Anna, magrinha, alta, assim que a repórter se aproximou.Queria saber se o rapaz está mesmo namorando com ela

“Ele disse pra senhora que gosta de mim?”, perguntou Anna, magrinha, alta, assim que a repórter se aproximou. Queria saber se o rapaz está mesmo namorando com ela. Diz que podia até voltar para a quase casa que divide com a família nos Coelhos e há dois meses abandonou, mas prefere permanecer ao lado de Alex (embora ele corra só, embora não ofereça papelão para ela dormir, embora não divida a coxinha na hora da fome). Já tem dois filhos, um de 3 anos, outro de 5 meses. Amamentou o último na “casinha”, como é chamada a prisão. Ela passou seis meses encarcerada por conta de associação ao tráfico de drogas. A vida cativa só forneceu à jovem um contraste maior quando comparado ao seu nível de romantismo. “Foi ruim na prisão, mas eu ia fazer o quê? chorar? Eu que tenho que tirar a cadeia, não é a cadeia que tem que me tirar.” Foi estuprada em janeiro deste ano, em Afogados (Zona Oeste do Recife). Estava sozinha. Não relaciona uma coisa à outra, mas é impossível não pensar em quanto a presença de Alex ao seu lado é importante depois de sabermos da violência que ela enfrentou – e das violências futuras que enfrentará.

SEXO E SOLIDÃO  - Na prisão, Anna conheceu Maria de Fátima, 34, que mantém um relacionamento amoroso com Djalma de Oliveira Lima (conhecido como Pelé), 54. Entre os dois, repete-se algo percebido entre o casal anterior: a proximidade e um inevitável envolvimento afetivo provocado pela solidão (algo mais presente nele) e ainda necessidade de proteção (algo mais palpável nela). Djalma e Maria estavam juntos há poucas semanas, dias que eles não souberam contabilizar. Se conheciam há tempos: ele trabalha como flanelinha perto no bairro de Santo Amaro e, desde que se separou da mulher, passou a dormir na rua, sob o teto de um fiteiro colado no muro de um hospital. “Há um ano, um mês e um dia estou vivendo assim”, disse ele. Maria, no entanto, diz que não dorme pelas ruas de jeito nenhum. “Eu pago para dormir em algum canto, eu tenho condições.” Na fala de Maria, o mesmo sentimento de não pertencimento identificado em Alex: vindos de famílias mais estabilizadas (ela vivia em Belo Jardim e veio para a capital ainda criança), eles fazem questão de se diferenciar daqueles que se encontram na mesma situação. Isso acontece, dolorido perceber, mesmo entre os que possuem uma relação além da amizade.

Quando Djalma se afasta para ajudar a estacionar mais um carro que chega à rua (onde um esgoto aberto toma conta do ar), por exemplo, Maria sussurra: “Eu não quero compromisso. Eu estou com ele, é verdade, mas é muitas vezes para me ajudar a comprar pedra.” Djalma não está alheio a tal realidade. “Eu sei tudo o que acontece. Eu sou um psicólogo. Mas eu ajudo. Se tá precisando de R$ 20, R$ 25, eu arrumo.” Nesse namoro fomentado por tantas razões, o sexo é um protagonista e um instrumento que sublinha a não solidão. Quando há algum dinheiro, além daquele usado para comprar alguma comida, alguma cachaça ou pedra, vão para um quarto. Mas na maioria das vezes, como Cleidson e Glauce, como Anna e Alex, procuram os terrenos baldios e ruas escuras para manter relações sexuais. Maria não gosta quando Djalma conta. Ele se impõe, olha duro para ela: “Pra que esconder? É assim, nessa vida é assim.”


Leia mais na edição do JC deste domingo

Últimas notícias