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Município de Solidão simboliza hoje um reino de fé e paz

Com seis mil habitantes, cidade sertaneja conseguiu o recorde de passar 11 anos sem registrar nenhum homicídio

Jorge Cavalcanti
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Jorge Cavalcanti
Publicado em 24/08/2014 às 8:39
Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Minha cidade é distante,

E se chama Solidão.

Lá a paz é uma constante,

E faz bem ao coração.

Quer ter vida sossegada,

E ter paz no coração?

Deixe a cidade agitada,

Vá morar em Solidão

Nos versos acima, o poeta Aldo Gomes de Sá descreve Solidão, sua terra natal, distante 403 quilômetros do Recife. Encravada no Sertão do Pajeú pernambucano, na divisa com a Paraíba e as cidades de Afogados da Ingazeira e Tabira, Solidão não constitui uma exceção apenas pelo nome. É o único dos 184 municípios do Estado que conseguiu atravessar uma década inteira sem um único registro de homicídio. A cidade é pequena, está entre as menores do Estado, com cerca de seis mil habitantes. Mas seu tamanho é insuficiente para explicar a dimensão do feito, que teve início antes mesmo do surgimento do Pacto pela Vida.

De acordo com a edição 2014 do Mapa da Violência, levantamento que registra e estuda os assassinatos no País desde a década de 1980, nenhuma outra cidade pernambucana, incluindo as sete do mesmo porte de Solidão, duas delas com menos habitantes (Itacuruba e Calumbi), conseguiu passar um período de cinco anos sem a ocorrência de homicídio. Solidão saltou bem mais adiante. Foram 11 anos – de 2000 a 2010 – ou 4.026 dias sem notícia de morte matada na cidade. Sob a ótica das estatísticas criminais, Solidão é quase um milagre.

Para entender o recorde, é preciso também conhecer a história do município que surgiu e cresceu à sombra de uma santa. Abrigada numa gruta ao pé de uma serra desde 1948, a imagem de Nossa Senhora de Lourdes ainda hoje atrai romeiros de todos os Estados do Nordeste, principalmente da Paraíba, replicando testemunhos de fé ao longo do tempo. No início, a história da água milagrosa que minava das pedras da gruta correu a região feito rastilho de pólvora. Chegou até a ser engarrafada e vendida por alguns espertos da época. Com o tempo, a água parou de minar. Mas já era tarde demais. E Solidão já havia se consolidado no imaginário popular como um lugar sagrado.

A delegacia da cidade funciona no primeiro andar de um imóvel localizado próximo ao portal de entrada. Nele, Nossa Senhora de Lourdes dá as boas-vindas e a bênção a quem chega. O escrivão Everaldo Ferraz dá expediente numa pequena sala, onde exerce mais os predicados de mediador do que propriamente os de policial. “A cidade é pacata. Quando sabemos que há alguma discussão entre marido e mulher ou briga por causa de bebida, chamamos logo para conversar”, conta.

A cidade é pacata. Quando sabemos que há alguma discussão entre marido e mulher ou briga por causa de bebida, chamamos logo para conversar

escrivão Everaldo Ferraz

Everaldo não é carola. Mas acredita que a forte religiosidade da cidade tem efeito direto sobre os escassos índices de violência. Desde 2000, quando o sistema de informática da Polícia Civil permite buscas nos arquivos da cidade, foram apenas três homicídios. Dois em 2011 e outro este ano. “É muito pouco comparando com qualquer outro lugar do mundo”, avalia o escrivão, elevando a cidade sertaneja aos padrões europeus.

FESTA DOS ROMEIROSSolidão transformou-se em santuário, para onde passaram a convergir fiéis de todos os recantos, antes mesmo de se tornar município. Em 1963, emancipou-se, juntamente com outras 40 cidades em Pernambuco. À época, a quantidade de caravanas só fazia aumentar. No início da década de 70, os fiéis organizaram-se para criar a Festa dos Romeiros, comemorada sempre no terceiro domingo de outubro. “A cidade fica cheia. É gente de tudo que é canto, de todas as idades. Agradecendo pelas graças ou renovando as promessas. No final de semana da festa, umas 10 mil pessoas passam por aqui. É impressionante”, conta o escrivão Everaldo Ferraz. Ele foi deslocado de Arcoverde, onde trabalhava, para Solidão em 2010. E diz que se surpreende a cada ano.

Apesar de outubro ser o mês de celebrar Nossa Senhora de Lourdes, a gruta localizada ao final de uma escadaria, no pé da serra, recebe a visita de fiéis durante todo o ano. São 59 degraus. Um corrimão, cuja base já não está tão firme quanto deveria, serve de ajuda para os idosos. Em qualquer dia, é possível encontrar fotos de pessoas depositadas próximas a uma cruz de madeira. São para elas os apelo à santa.

Quase todo morador de Solidão tem uma história de milagre para contar. Meio envergonhada, a dona de casa Maria Lúcia Ramos de Moraes, 49 anos, explica que, na casa dela, é Nossa Senhora de Lourdes quem paga as contas e garante o alimento na mesa diariamente. “Aqui não tem fonte de renda. Nem agricultura existe direito. Há uns anos montei uma lojinha no terraço. E vendo chaveiro, imagem, camisa. De Nossa Senhora de Lourdes e de outros santos. Mas é dela que o povo mais gosta”, conta. O movimento é seguro, mas incerto. “Tem dia que a procura é grande. Dá para faturar. Tem época que é mais fraca. Mas dá para vender R$ 50, R$ 70. E a gente vai vivendo.”

Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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MEMÓRIAS EM LIVRONascida e criada no município sertanejo, a professora Edite Evaristo de Lima, 76, é considerada a memória viva de Solidão. Já se aposentou, mas preserva o raciocínio rápido da época que empunhava o giz no quadro negro. Depois que deixou a sala de aula, escreveu um livro contando a história da cidade, desde a primeira família a levantar moradia na região, passando pelos inúmeros milagres que diz ter presenciado na juventude, até os dias atuais. Quando recebeu a reportagem em sua casa, em frente à igreja, pareceu entediada em ter que contar, mais uma vez, tudo de novo. Bastam, porém, cinco minutos de conversa e a professora Edite, como é chamada, muda a fisionomia e pega gosto pela conversa. Seu pai, Evaristo José, já falecido, foi um dos que doaram os recursos para a construção dos painéis que encenam as 15 estações da via sacra, espalhados ao longo da serra.

“Toda a história de Solidão é permeada pela fé. O padre Carlos Cottar, um francês, é considerado o fundador do vilarejo por ter celebrado a primeira missa por essas bandas. Antes da batina, foi internado num manicômio, tido como maluco. Ficou curado pelas mãos de Nossa Senhora de Lourdes. E virou padre aos 26 anos. Veio ao Brasil como pagamento da promessa. E aqui construiu a primeira capela”, relembra a professora Edite.

Até então, pontua ela, não existia a gruta. Muito menos a história da água milagrosa. A ideia de colocar a imagem da santa no pé da serra veio em 1946. “O padre Osvaldo Prins, vindo da Alemanha, comentou a semelhança da geografia de Solidão com a de Lourdes, na França. Quando meu pai e alguns amigos escutaram isso, lembraram que o padre Carlos Cottar, já falecido, teve um sonho de erguer uma gruta para abrigar uma imagem de Lourdes. Foi aí que decidiram juntar os donativos e iniciar a construção. Era um aviso. Não podia ser coincidência”, garante a professora Edite, com a convicção da fé.

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