Foram três Réveillons vendo os fogos que marcavam o início de um novo ano por uma janela do abrigo de adoção, até que, em 2018, Renato Silva* (nome fictício para preservar a criança), de 14 anos, pôde ver, do lado de fora, o que é esta festa em um lar. E na passagem para 2019 havia um bom motivo para comemorar: um novo ano, uma nova família. “Tudo que eu queria naquele momento era receber um abraço, de um pai, de uma mãe, que tivesse amor, e não tinha isso”, lembra o garoto, que agora tem carinho dos pais a todo instante.
Até julho do ano passado, Renato era uma das 200 crianças em Pernambuco que aguardavam um lar - de acordo com dados do Comissão Estadual Judiciária de Adoção (CEJA/PE) -, até que os novos pais, Luciana Silva*, 39 anos, e José Silva*, 53, conseguiram a guarda do tão esperado filho, que o casal esperava ter fazia pelo menos uns 18 anos.
“Já havia feito três tratamentos para engravidar e não conseguia ter filho. Isso me abateu muito. Ficava triste, sem vontade de me arrumar ou fazer algo”, diz a mãe, que agora, ao invés de desânimo, esbanja alegria ao olhar para o garoto. O encontro da família “tinha que acontecer de qualquer forma”, como eles mesmos afirmam, já que no cadastro de adoção o casal optou, inicialmente, apenas por crianças de até seis anos.
O primeiro contato com Renato, que na época tinha 13, foi por meio de uma foto, mostrada pela psicóloga de Luciana, que sabia do desejo da paciente. “Ela me mostrou a foto dele, mas logo vi que era um adolescente, e nós queríamos uma criança”, relembra a mulher. A decisão de romper com as barreiras da exigência, antes informada no cadastro de adoção, partiu do marido, que decidiu ir até o abrigo e ver de perto, quem de longe, já sentia afeto no coração. “Assim que ele apareceu e falou conosco, já senti que aquele era meu filho”, conta José, com um sorriso largo de orgulho. “Eu fui gerado em outra barriga, mas meus pais sempre foram eles”, complementa o garoto, ao ouvir a declaração do pai.
Laço de amor
Renato viu a irmã mais nova, de nove anos, ser adotada por outro casal antes dele, e a necessidade de ter alguém de afeto por perto só aumentou. “Quando eles me escolheram, senti uma paz. Primeiro tive medo, porque não sabia bem como seria toda essa mudança, mas depois o amor foi surgindo e eu pude perceber que ter eles comigo foi a melhor coisa que me aconteceu”, conta o adolescente. “E olhe que 2019 está apenas começando, tem muita coisa boa para acontecer ainda”, brincou Renato, que agora encontrou o “amor em forma de pessoas”, como ele mesmo diz.
O ano que apenas começou faz o garoto refletir em como mudar a história dos colegas órfãos que estão à espera de um lar, assim como ele ficou por um bom tempo. “Eu quero mudar a vida dessas crianças. Quando crescer, serei juiz da Vara da Infância e Juventude, para poder ajudar cada órfão e todas crianças que sofrem com o abandono”, comenta Renato, que também guarda a vontade de ser delegado, caso a primeira opção não aconteça. “De qualquer forma, vou atuar nessa área. Eu sei o que é estar do outro lado”, pontua o menino falante e de posicionamento firme.
“Eu pensei em desistir de tudo, até que Deus me deu meu filho, e hoje não o troco por 10 filhos do meu ventre, pois de uma forma ou de outra, o que une nossa família é o que constrói todo esse laço, que ultrapassa o sangue: o amor”, diz Luciana, emocionada em começar o ano com o presente que aguardou por muito tempo. Enquanto segura a mão do menino, outra lembrança surge, e Luciana conta que, em uma das primeiras conversas com o filho, disse que esperou 18 anos para o receber. Em resposta, Renato complementou que há 13 os aguardava chegar.
Assim, a nova família, acompanhada do cachorro serelepe, começa o ano unida, um complementando o sonho do outro: de dar e receber amor. “Amor e carinho, é tudo que qualquer pessoa precisa, e agora nós temos isso”, finaliza Renato.
201 crianças esperam na fila de adoção
Atualmente, há 1.117 pretendentes no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e 201 crianças aptas para adoção em Pernambuco. Ricardo Sá Leitão, juiz da Vara da Infância e Juventude, explica que o processo de habilitação para adotar leva cerca de 120 dias. Apesar do tempo, ele ressalta que não há muita burocracia envolvida e nem a necessidade de realizar pagamentos ou contratar advogados. “A habilitação nada mais é do que realizar a inscrição no CNA. É necessário apenas entregar os documentos requisitados e preencher a ficha de dados com informações como antecedentes criminais e histórico de saúde”, explica.
Após a documentação, os interessados passam por uma avaliação disciplinar, que leva em consideração a saúde física e psicológica, condições emocionais e a licitude da motivação para adotar. “A criança tem que estar em primeiro lugar. O pretendente tem que mostrar que vai saber acolher e compartilhar amor. Saber ser pai, ser mãe”, afirma o juiz. “Vale lembrar que as condições financeiras não são necessariamente determinantes, tanto que a maioria das famílias que adotam hoje em dia são de classe média baixa”, destaca.
Para auxiliar os pretendentes ao longo desse processo, eles são enviados para grupos de apoio, onde podem conversar sobre motivações, conselhos, experiências e desabafos. Ricardo Sá Leitão defende que a prática tem ajudado a desmistificar restrições que alguns ainda têm na hora de traçar o perfil para adoção. “Hoje em dia isso melhorou muito, as pessoas já abriram a mente, estão muito mais maduras e conscientizadas”, diz.
Casos especiais
Apesar da diminuição nas restrições impostas pelos adotantes, ainda há fatores vistos como barreiras. A fim de reduzir os casos de jovens que passam por dificuldades para encontrar pretendentes nacionais ou internacionais, a Comissão Estadual Judiciária de Adoção (CEJA-PE) desenvolveu o Projeto Família, que busca inverter a lógica do processo ao propor uma busca ativa. Ou seja: ao invés de buscar crianças que se encaixem no perfil dos pretendentes, o projeto procura as famílias para as crianças e adolescentes que estão aguardando por um novo lar.
“No geral, o projeto engloba crianças com deficiência, adolescentes, grupos grandes de irmãos, etc. Os grupos de irmãos, por exemplo, antes de decidir desmembrá-los, nós tentamos encontrar uma família interessada em adotar todos juntos através da busca ativa, divulgando o perfil das crianças através das redes sociais do CEJA para tentar atrair os interessados”, explica Mirella Torres, analista judiciária e psicóloga do órgão. Ricardo explica que irmãos podem ser separados apenas em casos de exceções, mas, mesmo assim, as famílias adotantes tem o compromisso de manter o vínculo afetivo e familiar entre eles, permitindo o contato e encontros.
De acordo com o site do TJPE, 50 crianças contempladas pelo projeto estão aptas à adoção individualmente, além de 18 grupos de irmãos que somam outras 46 crianças. No total, 33 tem algum tipo de deficiência e 19 delas tem 17 anos, características que costumam dificultar o processo, assim como a necessidade da adoção de irmãos em conjunto.
*Nomes fictícios - nenhum personagem, tampouco local da residência da família ou nome do abrigo foram identificados por questão de resguardo de imagem da família