Entrevista

'A guerra contra as drogas fracassou', diz Alonso Salazar, ex-prefeito de Medellín

Gestor esteve no Recife para participar do seminário da Amupe. Falou para quase 100 prefeitos pernambucanos os caminhos para enfrentar a violência urbana

Ciara Carvalho e Mona Lisa Dourado
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Ciara Carvalho e Mona Lisa Dourado
Publicado em 10/07/2019 às 7:17
FOTO: Alexandre Gondim/JC Imagem
Gestor esteve no Recife para participar do seminário da Amupe. Falou para quase 100 prefeitos pernambucanos os caminhos para enfrentar a violência urbana - FOTO: FOTO: Alexandre Gondim/JC Imagem
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Entre os anos de 2008 e 2011, Alonso Salazar comandou uma revolução em Medellín. À frente da prefeitura da cidade colombiana, enfrentou a violência urbana com as mais poderosas das armas: educação e cultura. Espalhou, justamente nos bairros mais pobres e violentos, as mais belas bibliotecas, levou escada rolante e transporte público de qualidade para as comunas, áreas que aqui chamamos de favelas. “Os equipamentos mais bonitos para os mais pobres”, gosta de repetir. Ontem, em seminário promovido pela Associação Municipalista de Pernambuco (Amupe), no Centro de Convenções, o escritor e jornalista contou o que viu e viveu à frente de Medellín a uma plateia com quase 100 prefeitos pernambucanos. Nesta entrevista, o ex-gestor defende que nenhum sistema de justiça é efetivo se não passar pela prevenção. “E a prevenção é um dever especial dos prefeitos.”

JORNAL DO COMMERCIO – Como prefeito de Medellín, suas ações foram muito voltadas para a juventude. Esse é o caminho mais estratégico para o enfrentamento da violência?
ALONSO SALAZAR - Sim. Em toda América Latina temos a tragédia de uma realidade em que a violência, caso se possa resumir, são basicamente jovens pobres que assassinam jovens pobres. Às vezes, por iniciativa própria de organizações e gangues; às vezes, instrumentalizados por outros poderes ou, às vezes, são bucha de canhão da má atuação da força pública ou de grupos de limpeza social. Por isso, a prioridade é atender a meninos e meninas e arrancá-los dessa corrente de mortes. Como costumo dizer, é uma questão de que cada prefeito tenha vontade política e busque recursos, assim como também os Estados e o País. Mas as mudanças se geram com fatos. Se as ações são bem pensadas, se são construtivas, essas transformações acontecem, sobretudo se envolver a comunidade na tomada de decisão. O modelo que seguimos parte de algo que chamamos de “oficinas de sonhos”, em que as próprias pessoas contam aos arquitetos e urbanistas o que imaginam e desejam. É possível que o que elas digam não seja necessariamente o que se vai construir, mas o fato de se envolverem no projeto faz toda a diferença.

JC – O senhor conta que, entre as décadas de 80 e 90, mais de 80 mil vidas jovens foram ceifadas na Colômbia devido ao narcotráfico. Em Pernambuco os dados oficiais mostram que 70% dos homicídios têm relação com o tráfico de drogas. Como o senhor enxerga a guerra às drogas, cujo alvo principal termina sendo os jovens? O senhor defende outro tipo de enfrentamento?
SALAZAR – Essa é uma questão muito complexa, mas digamos que a estratégia de guerra contra as drogas fracassou. E a Colômbia é um exemplo muito bom porque ainda que tenha extraditado mais de quatro mil narcotraficantes, o narcotráfico segue. Mesmo que tenhamos fumigado milhares de hectares na Amazônia, hoje ainda temos 200 mil hectares de coca. Ou seja, algo não está funcionando. As alternativas a isso são complexas e muito difíceis de resumir, porém, a comunidade internacional deveria começar por aceitar que há um fracasso. Agora, enquanto segue a legislação atual, o Estado precisa combater essas formas de criminalidade nos territórios. No entanto, um prefeito talvez deva esquecer a noção unicamente de polícia. Na Colômbia foram realizados operativos nas comunidade (como as UPPs), que resultam inúteis porque são ocupações temporárias sem a presença do Estado. Talvez se as ações estiverem centradas em bonitos colégios, bibliotecas e parques, isso sim, permanece para sempre. Essa é a presença simbólica do Estado mais transcendental. E a prevenção é um dever especial dos prefeitos. Quase todas as autoridades têm muita responsabilidade, mas são os prefeitos que estão nos territórios e têm contato direto com a população e que, portanto, têm que prevenir. O que ocorre é que politicamente também é muito útil ter inimigos ou manter os jovens violentos para depois inventar leis, por exemplo, que reduzem a maioridade penal. Não é efetivo o sistema de justiça caso não se ative o sistema de prevenção.

JC ­- Ainda há uma resistência dos prefeitos de se envolver diretamente com a questão do enfrentamento da violência. Como superar isso e trazê-los para a ação?
SALAZAR – Temos prefeitos e prefeitas mais sensíveis, mais conscientes de um papel de crescimento orgânico da sociedade e que são capazes de dar passos. Eu vejo o processo do Compaz aqui. Essa é uma decisão política. O que se está produzindo nos territórios é extraordinário. As evidências mostram que isso é bom para as pessoas e que dá êxito político fazer prevenção.

JC – O senhor sabe que a inspiração vem das cidades colombianas.
SALAZAR – O Compaz é um modelo melhorado. Há uma série de avanços. No Compaz, por exemplo, há mais integração. Nós fizemos tudo isso, mas de maneira mais dispersa. Gosto muito dessa centralidade que geraram aqui, de se agregar em um mesmo espaço vários serviços, que atendem a necessidades-chave dos setores populares.

JC – O Compaz reproduz um conceito que o senhor costuma reforçar: o mais bonito para os mais pobres. Em que isso interfere no que se quer conseguir como gestor público?
SALAZAR – São valores aparentemente intangíveis, muito subjetivos. Em geral, se faz poucas coisas para os setores populares. E quando se faz, são coisas comuns, cinzas, sem brilho. Nós decidimos que a estética era um valor muito especial para que gerasse orgulho, identidade e autoestima. Isso se cumpriu ao pé da letra. Nesses lugares onde fizemos edificações bonitas e implantamos escadas rolantes nas favelas – ou comunas, como nós chamamos – as pessoas costumam transformar, elas mesmas, todo o entorno, pintando suas casas, por exemplo. Logo ocorreu outra coisa interessante, que é a reorganização da economia no entorno dessa centralidade e também um processo de autogestão. Outro resultado que não esperávamos, mas que é muito forte em Medellín, é o turismo social, posto em prática pelos jovens dessas localidades que recebem os turistas, mostram o grafite de artistas de Medellín e de outras partes da Colômbia e fazem uma coisa muito bonita que é contar sua história, a história de sua comunidade, inclusive os episódios de violência e a maneira como o estão superando. A estética gera algo muito maior do que poderíamos imaginar.

RENOVAÇÃO POLÍTICA

JC – As evidências também mostram que a redução da violência se deu de forma mais acentuada e duradoura nas cidades onde a gestão municipal assumiu esse enfrentamento. Para mudar as perspectivas de ação, é preciso trazer para a liderança pública atores de fora dos modelos políticos tradicionais?
SALAZAR – No caso de Medellín fizemos as mudanças com pessoas que vieram de fora do sistema político tradicional. No entanto, depois encontramos um prefeito que deu continuidade ao modelo, porque simplesmente se trata de romper uma inércia. Os administradores públicos chegam e se instalam e entram em uma rotina de repetição, ainda que seja de modelos fracassados. Por isso, é necessária uma sensibilização para que entendam que há outra maneira de obter êxito político. Às vezes se pensa que, quando se trabalha com os mais pobres, talvez não haja tantos votos. Não é assim. Os prefeitos que estão comprometidos com modelos alternativos de desenvolvimento em áreas de conflitos têm grande êxito e têm se projetado como figuras nacionais.

JC – Como manter essas conquistas a longo prazo, a despeito do retrocesso nas políticas sociais por que passa o mundo e, em especial, o Brasil?
SALAZAR – Há que se persistir nas coisas em que se tem experiência e confiança. Se você olha na América Latina o mapa da violência urbana que está desenhado, ele gera custos econômicos e atrasos sociais extraordinários. Isso acontece em governos que estão tanto à esquerda quanto à direita. Há algo mais de crise, que são os sistemas ideológicos, políticos e as exclusões. Caracas, por exemplo, é a cidade hoje talvez mais violenta do mundo. Da mesma maneira em que governos de direita da América Central ocorrem coisas parecidas. E tanto para uns como para outros há princípios que deveriam ser inegociáveis. As intervenções nos territórios têm que ocorrer através do reconhecimento de plena cidadania dos habitantes. No mundo, estão rompidos os paradigmas e quando se rompem os paradigmas as soluções extremas correm fácil. Tomara que possamos ter uma contenção rápida dessas tentações autoritárias de um lado e de outro.

JC – Vivemos uma fase de populismo, de líderes populistas. E o senhor já afirmou que governar por popularidade é uma armadilha. Como escapar dessa armadilha?
SALAZAR – A tentação populista é uma coisa difícil de deter, sobretudo porque é muito contagiosa e leva a fórmulas radicais, supostamente salvadoras. As pessoas quando estão em momentos de crise escutam coisas desse tipo e têm que esperar até que as circunstâncias indiquem que esse caminho está equivocado para corrigi-lo. Acredito que os principais remédios para essas situações de radicalização é a fortaleza das propostas de centro, tanto de esquerda quanto de direita. Agora mesmo na União Europeia houve quase uma aliança da centro-esquerda e da centro-direita para conter os populismos. Porém, além disso, é fundamental os meios de comunicação e as redes sociais, que são muito facilmente instrumentalizáveis para esses outros propósitos, ajudarem a formar uma cidadania muito mais consciente da política.

JC – Qual o recado para os prefeitos pernambucanos que enfrentam o problema da violência em menor ou maior medida, como o senhor enfrentou quando foi prefeito de Medellín?
SALAZAR – O que faço sempre nesses casos é contar a história de Medellín, que é suficientemente dramática. Não creio que Pernambuco tenha chegado às nossas doses de violência. Isso para dizer, em primeiro lugar, que se pode superar essas circunstâncias e que temos lideranças políticas que tomaram a decisão de enfrentá-las. E, em segundo lugar, que há de se encontrar caminhos novos e temos mostrado que esses caminhos também são muito exitosos. Tanto que Medellín há 10 ou 12 anos era escassamente visitada por turistas estrangeiros e hoje o setor econômico de maior crescimento é o turismo. Medellín se converteu em uma cidade de eventos, de espetáculos. E há também muitas opções para os setores populares que antes estavam muito excluídos e estigmatizados. Espero que essa experiência inspire, provoque esse sentimento entre os prefeitos, que busquem neles mesmos, em seus contextos e em seu entorno caminhos para recorrer, porque não se trata mais de repetir uma fórmula.

JC – Educação e cultura seguem sendo os dois pilares básicos?
SALAZAR – Sim. A educação segue tendo uma vantagem tremenda: por um lado, gera equidade. Uma pessoa educada consegue muito mais chances de estar no mercado, e gera competitividade. Os ganhos são enormes quando se concentram nisso e se fazem ciclos completos, por exemplo, com formação técnica, tecnológica, universitária. O propósito se cumpre de maneira mais completa. E a cultura no sentido em que modifica comportamentos, modifica a maneira de ser, de sentir e seguramente é um instrumento mais significativo em um território. A cultura é outra linguagem que atua sobre o tema da violência, da maneira que até os mais violentos logram entender.

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