O ano de 1966 foi de renovação do frevo. Novos autores se insurgiram contra a predominância, nos lançamentos da gravadora Rozenblit, de autores já consagrados - Capiba, José Menezes, Nelson Ferreira, a quem tratavam por "O Dono do Frevo". O debate foi para os jornais, emissoras de rádio, e chegou ao disco particular, o que nos anos 70 se chamava de "independente", com o surgimento de selos como o Harpa ou Capibaribe. Sem alarde, nem se aliar aos insurgentes, José Michiles da Silva, um jovem professor de desenho na Escola Industrial Agamenon Magalhães, na Encruzilhada, ainda pouco conhecido no movimentado cenário artístico recifense da época, surpreenderia não apenas o Dono do Frevo, como aos demais maiorais do gênero, ganhando o concurso Uma Canção Para o Recife, promovido pelo Serviço de Recreação e Turismo, órgão ligado à Secretaria de Educação municipal.
Uma vitória que demarcaria o que o hoje conhecido J. Michiles considera o início de sua carreira: "A abertura das inscrições será em junho, mas aconteceu uma cheia, e foram adiada. Pouco tempo depois fui para o estado do Rio visitar meus pais que tinha se mudado para Caxias. Soube então que as inscrições foram reabertas na véspera do encerramento. Tinha pedido para um maestro amigo do meu tio Orlando Dias fazer o arranjo. Peguei o material, botei num envelope e fui para o Aeroporto Santos Dumont tentar encontrar alguém que tivesse indo para o Recife. Sai perguntando e um garoto me apontou a tia dele, que era do Recife. Fui lá expliquei a situação, disse que o envelope teria que ser entregue naquele mesmo dia a minha namorada que morava na Rua Odorico Mendes, em Campo Grande. Ela faria a inscrição na Rua do Lima, em Santo Amaro. Por coincidência a mulher morava numa rua por trás da Odorico Mendes", recorda J. Michiles.
"Eu nem compus uma música nova. Adaptei uma que tinha feito para o Rio, alguns anos atrás, entre 1959 e 1960. Quanto voltei para o Recife fui na TV Jornal do Commercio, na Rua do Lima, saber se minha música tinha sido aceita. Fui classificado, e ela ia ser defendida por um cantor jovem, Marcus Aguiar, muito popular na TV naquela época. Mas eu não achava que fosse ganhar no meio de tantas feras", diz.
A composição de J. Michiles, a hoje clássica marcha de bloco Recife Manhã de Sol, ganhou o troféu Antonio Maria (jornalista e autor de Frevo nº 1 do Recife e Manhã de Carnaval). Disputando com 120 concorrentes, das quais 20 foram finalistas. Entre as favoritas estava, por exemplo, A Canção do Recife, de Capiba e Ariano Suassuna, que ficou em segundo.
Os donos do frevo não aceitariam facilmente a vitória de um novato que não pertencia ao clube. O também compositor Valdemar de Oliveira, que arbitrava na cultura pernambucana há décadas, recusou-se a votar nas concorrentes, por considerar que elas não possuíam qualidades suficientes (e declarou sua posição em artigo publicado no Jornal do Commercio). Os outros integrantes da comissão julgadora foram o maestro Vicente Fittipaldi (que também se esquivou a votar), Mauro Mota, Marcos Vinicius Vilaça, Padre Jaime Diniz e Aderbal Galvão. Por sua vez, o compositor e poeta Cilro Meigo acusou o ganhador de plágio. Outros concorrentes inconformados também fizeram coro contra a música vencedora.
Lançada em compacto pela Rozenblit, na voz de Marcus Aguiar, Recife Manhã de Sol somente teria seu verdadeiro valor reconhecido em 2000 quando o J. Michiles comemorava 40 anos de carreira e foi lançado o CD Asas do Frevo, com diversos intérpretes cantando suas composições. Maria Bethânia foi quem gravou Recife Manhã de Sol. Com tal exposição, a música, que estava quase esquecida, passou a ser cantada no Carnaval do Recife, incorporado ao repertório dos blocos líricos. Até então, ela só sido regravada por Orlando Dias (1976) e por Alcymar Monteiro (2006).
Mesmo que não tivesse vencido o Uma Canção Para o Recife, em 1966, J.Michiles estaria na história do Carnaval pernambucano pelos sucessos que emplacou com Alceu Valença, frevos-canção que contribuíram para modernização do gênero. "Acho que meu maior sucesso foi Bom Demais com Alceu. Antes dele, foi gravado com a Banda de Pau e Corda, mas não estourou, com Alceu bombou. Na quarta-feira vi a manchete no jornal: ‘Carnaval Foi Bom Demais’. Tive mais quatro grandes sucessos com ele", conta Michiles - Me Segura Senão Eu Caio, Vampira, e Diabo Louro. Frevos que fizeram sucesso nacional porque Alceu Valença, na época, era contratado de gravadora grande, com poder de fogo para tocar seus artistas no rádio.
No ano passado, em parceria com Gustavo Krause, Michiles venceu o Concurso de Marchinhas Carnavalescas da Fundição Progresso, com o frevo-canção Adoro Celulite, feito para o bloco homônimo, nos anos 90. Apesar de ampla divulgação, em jornal e TV, a música não tocou. Para o Carnaval 2016, J. Michiles compôs mais duas músicas: Cuecão do Pixuleco e Amo Ela (marcha cacofônica).
Ele bancou o single e é o intérprete dos dois frevos, mesmo sabendo que dificilmente eles repetirão o sucesso de outrora: "A esperança é que um disque-jóquei goste e toque de graça. Ainda tem programas que valorizam o autor local, feito os de Geraldo Freire e Edinaldo Santos, na Rádio Jornal. A coisa mais gratificante é fazer uma música na solidão e ver um milhão de pessoas cantando no Galo da Madrugada".