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Ciara Carvalho: Eu tive um sonho. Ele se chamava Carnaval

Eram apenas quatro dias. Mas eles eram tão intensos, mas tão intensos, que valiam por uma vida inteira.

Ciara Carvalho
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Ciara Carvalho
Publicado em 26/02/2020 às 18:58
Diego Nigro/Divulgação/PCR
Eram apenas quatro dias. Mas eles eram tão intensos, mas tão intensos, que valiam por uma vida inteira. - FOTO: Diego Nigro/Divulgação/PCR
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Eu tive um sonho.

Sonhei que um Galo gigante se erguia aos pés da ponte, tão bonito, mas tão bonito, que nem treta na internet teve. E lindeza mesmo era ele, à noite, todo iluminado, como nunca se viu antes. Era um Galo tão arretado, mas tão arretado, que milhares de apaixonados nem se importavam de levar acocho, empurrão, pisão no pé, o sol queimando o quengo, num calor dos infernos, só para declarar esse amor incondicional. Soube até que suas maravilhosidades, de tão fantásticas, foram parar em São Paulo e, pela primeira vez, ele arrastou uma multidão fora de casa. Só podia ser o maior do mundo, claro.

 

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Sonhei que tinha uma turma, pintada de vermelho e amarelo, comandada por um dragão que voava alto, muito alto, sem sair do chão. Por onde esse dragão passava, as pessoas ficavam tão felizes, mas tão felizes, que largavam tudo o que estavam fazendo, só para ir atrás dele, se abraçar e festejar. E essa massa amarela e vermelha subia e descia ladeiras de pedra, muito íngremes, sambando, frevando, sem nem botar a língua para fora, porque, nessa cidade onde o dragão nasceu, os fracos não têm vez.

Nem os fracos, nem os vilões, nem os arqui-inimigos do planeta. Sabe por quê? Porque no ponto mais alto dessa cidade se juntavam uns super-heróis, muito corajosos, que botavam para correr tudo o que é mau-encarado, cabra ruim e alma sebosa que tem por aí. Esse pessoal se encontrava com uns lutadores bem marrentos, todos fora de forma, com charmosas barrigas de chope, e armavam um ringue onde a briga era para saber quem se divertia mais. A explosão era tanta que só bonecos gigantes, um atrás de outro, para dar conta de uma felicidade tamanha.

Sonhei que nessa cidade tinha um calunga mágico que fazia todo mundo se juntar, à meia-noite, só para vê-lo sair, elegantérrimo, com seu fraque verde e branco e sua cartola de rei. Ele era tão querido, mas tão querido, que todo mundo, imediatamente após a sua saída, começava a gritar: “Ê, f... O Homem apareceu!” E, quando esse senhor aparecia, que emoção! Seus lindos trajes rendiam uma justa homenagem à valentia, à resistência e ao talento do seu povo. “Lute como uma praia do Nordeste”, ensinava, arrancando suspiros de mulheres, homens, velhos e crianças. Reverenciado, o calunga seguia seu caminho e sua missão de entregar as chaves para outra preciosidade centenária da cidade de pedras. “Se for, vá na paz”.

Sonhei que havia uma ilha para onde todos convergiam, onde todos se encontravam. Essa ilha se transformava num grande picadeiro, onde sambistas, roqueiros, pagodeiras, passistas, batuqueiros formavam o maior espetáculo da terra. Era só atravessar a ponte, para ir e para voltar, muito além do pensamento. Logo na primeira noite, uma musa arrastaria tantos súditos para vê-la e ouvi-la que, além de inédito, aquele momento também seria histórico. Assim como faria história uma rainha, numa noite só delas, soltar a voz grave e mandar o recado: “O negócio é ir para as ruas”. E eram tantas outras vozes ocupando os muitos palcos dessa ilha que toda essa energia me fazia lembrar de um desenho colorido, uma rosa muito bonita, que dizia, mais ou menos, assim: Eu vi o mundo... Ele começava aqui. Bem no centro dessa ilha, cercada por um rio que se encontra com o mar.

GRITO DE RESISTÊNCIA

Sonhei que, pegando a estrada, para longe dessa cidade de pedras e dessa ilha encantada, havia outras cidades cheias de mascarados. Uns se chamavam papangus e tinha até concurso para saber qual o mais papangu de todos. Outros andavam pelas ruas com um chicote na mão, arrancando estalos do chão e susto dos curiosos. Na terra dos canaviais, era de arrepiar ver o encontro de tantos homens simples, vestidos com suas golas coloridas, imperiosas, e de lanças na mão, transformando tradição em vida. Esses caboclos, mais do que guardiões de uma história centenária de oralidade, ensinavam o quão poderosa uma manifestação cultural pode ser. Guiadas, relhos e chapéus; alfaias, ganzás e agogôs. O brinquedo não pode morrer. Em todas as suas traduções. Porque na noite em que os tambores silenciam, o grito também é de resistência.

Sonhei que nesses dias as mulheres saiam às ruas, vestidas como quisessem, e seus corpos eram respeitados. Que as fantasias explodiam em alegria e escracho, mas também carregavam revolta, protesto, luta. Eram apenas quatro dias. Mas eles eram tão intensos, mas tão intensos, que valiam por uma vida inteira.

Eu tive um sonho. Ele se chamava Carnaval.

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