Oneida gostaria de sonhar, mas a visão de Nina, a gata ferida e sem orelhas que circula pela cozinha enquanto ela termina de cozinhar o feijão, silencia qualquer devaneio possível. Oneida, que comprou cerâmica branca reluzente para a casa seminova construída ao pé de um viaduto, talvez se arrependa: o que é claro e o que é novo infelizmente só destaca o que de velho ela já carregava: ventiladores, caixas, panelas, molduras, sombrinhas. Sublinha também a sujeira trazida das ruas ao redor, as vias sem cimento, calçamento, vários córregos de esgoto brilhando à luz do sol. Depois do almoço, coloca um banquinho à porta da casa, são dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Fica a observar os carros que vão para a Zona Sul, os que descem para a Zona Norte, o prédio enorme do Fórum do Recife, seus contornos evocando a Roma Antiga, seis pavimentos, 43 mil metros de área, R$ 39 milhões para ficar de pé. Oneida observa os netos, um segura no colo o bebê da vizinha, a menina tem a pele muito marcada pelos insetos e toma na mamadeira um líquido rosa enquanto olha para o céu. Lá no alto, um dos outdoors gigantes que fraturam orgulhosamente a paisagem do bairro de Joana Bezerra anuncia: “A solução em promoções e capital humano para você”.
Oneida não frequentou a escola e não sabe o que diz o texto daquele cartaz (no mercado, o nome correto é frontlight), tampouco o do outro que oferece os serviços de uma casa de câmbio. Mas isso não impede que, como brasileira educada pela publicidade, leia as imagens. “Esse último é sobre esse negócio de dólar, não é?”. Ponto para o outdoor, onde uma imensa nota norte-americana traz o rosto de um quase riso de Benjamin Franklin, visto ao lado de dois cartões de crédito. Aposentada, a senhora de 76 anos mora há apenas um no bairro que passa por uma intensa transformação: perto de sua casa, está o muro que demarca o local da construção de um novo prédio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Faz parte do chamado Polo Jurídico de Joana Bezerra. Oneida, espremida pela modernidade, vivia no Pina, mas uma estrada foi aberta onde se erguia seu antigo lar. Recebeu do governo R$ 22 mil. Atravessou dois viadutos e chegou a Joana Bezerra, onde encontrou a nova casa. Tinha só dois vãos. Deu R$ 10 mil e empregou o restante do dinheiro para aumentar o espaço, onde vivem quatro pessoas. Um dos quartos, assim como quase toda a cozinha, é povoado por caixas repletas de panelas, roupas, sacolas plásticas. Parece que a família chegou ontem. A verdade é que já esperam sair de novo dali. “Dizem que vão tirar a gente por causa do metrô. Não sei, vou ficando e esperando”, comenta, enquanto, meio constrangida por conta da bagunça, procura dobrar algumas das roupas. Uma delas, uma camisa masculina amarelo-desbotada, chama atenção pela etiqueta importada: Gucci. Pertenceu a um sobrinho. “Tem que ajeitar a casa, mas agora não dá.” Dos R$ 480,30 que recebe da aposentadoria, R$ 130 estão sendo destinados a saldar um empréstimo que fez em um banco federal. Prometeu: só iria se endividar de novo depois de pagar. “Acho tão feio o povo vir na sua porta para levar as coisas que você comprou de volta.” Por isso, economiza. Faz a feira aos poucos “de retalho”, cesta básica só quando tem algum a mais sobrando, frango para o domingo, idem. Cristina, 25 anos, neta de Oneida, há tempos não compra nada. Está desempregada. Mora a alguns metros da avó, também sob os cartazes orgulhosos que decoram o viaduto construído sobre o bairro de menor Índice de Desenvolvimento Humano (0,632) do Recife, posto dividido com o bairro de São José, de acordo com o último Atlas Municipal, de 2005. Diz que não repara muito nos cartazes, embora saiba ler, fez até a 5ª série. “Só sei que tem muita coisa em inglês.”
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Perto dali, Paulo Jorge da Silva, 46, o “Irmão do Videogame”, também fala apenas português, muito embora tenha sido forçado, nos últimos meses, a lidar com palavras como fight, time, select, start, insert, coin. Elas (briga, tempo, selecione, comece, insira, moeda) são comuns nas duas máquinas de jogos que alugou, ambas postas em uma espécie de terraço-comércio onde ele ainda oferece pipocas, hambúrgueres, água, refrigerante, doces. Foi a alternativa para driblar o desemprego e a consequente falta de dinheiro que o impede de desfrutar os prazeres oferecidos no outdoor que se levanta quase sobre sua residência, onde uma operadora de celular anuncia “novos planos 3G Plus, 2 GB por apenas R$ 64,90”. Também não pode comprar, para o Natal, os doces, coxinhas e tortas oferecidos em outro cartaz, que anuncia, alegre: “Tudo para sua festa - 100 salgados a partir de R$ 28,99”. Até antes do início da expansão do metrô, tinha um fiteiro que funcionava justamente na Estação Joana Bezerra. Semanalmente, conseguia mais de um salário mínimo no ponto. Agora, a semana, quando boa, lhe rende até R$ 200. “Ia ser importante se eles botassem anúncio de trabalho, não é?”
Ia mesmo. Eliana, esposa de Paulo, mãe de quatro filhas, ajuda a fritar os hambúrgueres, cuida da casa, lava a roupa na máquina de lavar semiautomática que foi posta em frente ao lar, localizado entre o viaduto e os outdoors vendendo a vida boa. Mas os R$ 200 semanais, quando são R$ 200, não dão conta do que querem as meninas, os sapatos, mochilas, celulares, salgados para a festa. Elas crescem, como todos nós, sendo ensinadas que nossa cidadania tem começo e fim no consumo. É preciso dinheiro, assim, para ser pleno cidadão brasileiro. Paulo pede: “A senhora pode levar o currículo da minha mulher e entregar no jornal? Ela faz qualquer trabalho, serviço de limpeza, tem a foto no documento.”
Foto: Priscilla Buhr/JC Imagem
Os filhos de Rosineide Maria Lima, 34, mora perto de Oneida e Paulo, conseguem, mesmo que de maneira pálida, acessar o que oferece um dos cartazes (aquele do 3G): Niedja, 11 anos, e Robson, 14, têm computador e um modem, pagam cerca de R$ 100 para usar o celular e a internet, quase o valor do aluguel da casa, que sai por R$ 140. A mãe “faz bico”, faxinas nas casas dos outros, como ela explica depois de se aproximar do carro da reportagem e perguntar meio desconfiada: “O que foi que aconteceu? Mataram Fulano, foi?”. Alguém mais longe grita: “Rose, sai daí, Fulano vai achar que tu tá entregando ele.”
Homem do nome bonito, Manoel Senhorsinho, 72, também vive sob o anúncio “A solução em promoções e capital humano para você”. Não se incomoda em falar com os repórteres: conta que usa o auxílio-moradia, a aposentadoria e a renda dos picolés que vende em casa para dar conta da criação de três filhos. Alice, 17, acompanha a entrevista e ouve o pai comentar que trabalhou 30 anos como pedreiro, mas não conseguiu garantir um lar mais confortável: passa a tarde perto de um ventilador, já que a casa, colada a várias outras, localizada em uma espécie de corredor, quase não possui ventilação. Mas é o calor, no final das contas, que faz sua renda esticar um pouco mais. “Eu vendo para o pessoal aí da obra, eles passam a tarde comprando, ninguém aguenta trabalhar o dia todo nesse sol com aquela farda.”
Com uma população de dez mil pessoas, 312 comércios informais, 56 salões de beleza, 100 crianças na creche (outras 500 na fila de espera), a Entrapulso é uma das comunidades mais peculiares de Recife: encravada em meio ao Índice de Desenvolvimento Humano mais alto da cidade (0,964 para Boa Viagem/Pina, orla da Avenida Herculano Bandeira), a área, a despeito da pobreza que historicamente a demarca, torna-se cada vez mais comercial, com dezenas de lojas não só nas vias principais, mas também dentro de ruelas e becos vistos apenas por quem mora ali.
Igualmente peculiar é a série de outdoors colocados às costas das casas, perto do estacionamento do Shopping Center Recife: repletos de imagens de juventude, frases em inglês, promessas de felicidade e felicitações de ano-novo, fecham parte da visão da área a partir da perspectiva de quem passa na rua de trás: à frente, em vez de olhar as casas sem reboco, o passante continua sendo acalentado pelo mundo sem ruídos da publicidade. É região disputada pelos anunciantes, de acordo com a empresa que comercializa a área.
Enquanto cozinha bolos e tortas na cozinha de sua casa, Joana Gomes, 52, olha justamente para as costas marrons dos outdoors, coloridos apenas para quem está do lado de lá. Ela cede parte do quintal para uma empresa que lhe paga, mensalmente, R$ 200 para anunciar no espaço (“por um verão marcante”, diz um dos outdoors). Com o dinheiro, promove melhorias materiais em seu lar: atualmente, desembolsa R$ 215 por mês para dar conta da geladeira e da estante nova quem comprou. Não poderia ter nada disso se dependesse apenas da renda da comida que produz e comercializa na própria casa. A fatia do bolo sai por R$ 2, o cachorro-quente custa R$ 2,50, o hambúrguer, R$ 3. É uma ocupação menos pesada do que aquela que exercia quando trabalhava em uma escola de classe média alta, como auxiliar de limpeza. Além de carregar bancas, lavar banheiros, varrer salas e corredores, ela cuidava das crianças pequenas na hora do recreio. O trabalho na cozinha de sua casa própria também é menos pesado de quando foi empregada doméstica, profissão que começou a exercer com apenas 12 anos, quando veio de Aliança (Zona da Mata Norte) para Recife. Quase todos os seus clientes moram ali mesmo, naquela espécie de oásis ao contrário que é a Entrapulso, onde a escola municipal funciona em um prédio alugado, com pouco espaço e estrutura para atender a dezenas de crianças que futuramente aprenderão a ler os cartazes que atualmente as escondem.
Denise Soares, 35, nasceu e cresceu ali, cercada pelas promessas de vida boa dos outdoors. Lembra quando as ruas da Entrapulso não tinham qualquer asfalto (hoje tem, na verdade é paralelepípedo, Joana diz que melhorou muito porque quando chovia não dava para passar). Lembra de quando, adolescendo, desejava, assim como os amigos, um computador, as roupas, as coisas que podiam ser compradas em 12 prestações. Arrumou o primeiro e desejado emprego aos 18 anos, justamente no estacionamento do shopping.
O primeiro salário foi todo para o comércio: uma TV Semp-Toshiba, 14 polegadas, foi o presente que deu a si mesma. Seu sonho era ter um televisor só para si, não ter que compartilhá-lo com as outras pessoas da família. Apesar de ter um emprego e o dinheiro que a tornavam distinta dos demais colegas da comunidade, muitos sem trabalho, outros em subocupações, ela não se sentiu especial quando adentrou algumas lojas, finalmente visitadas após sua condição de assalariada: “Eu ia usando a farda do estacionamento mesmo, no intervalo do trabalho. Entrava nos cantos e ninguém me olhava, me atendia”.
Depois do estacionamento, trabalhou como vendedora em vários estabelecimentos, mas há três anos ficou desempregada. Herdou da mãe um pequeno fiteiro na Rua Bruno Veloso, área nobilíssima na comunidade, só equiparada a também comercial e concorrida Ernesto de Paula Santos. São vias frequentadas por funcionários do centro comercial, que se misturam aos moradores da Entrapulso em lanchonetes, salões de beleza, lojas das últimas modas. No seu fiteiro, Denise atende a vários: serve cachorro-quente, coxinha, cuscuz, macaxeira, calabresa, carne guisada, charque. Ao contrário das vendedoras de algumas lojas que visitou, não distingue ninguém por suas roupas: enquanto conversava com a reportagem, sorriu para a moça loura de terninho que foi comprar um “dogão”, sorriu para o homem sem camisa que levou um enroladinho de salsicha.
Garantir os clientes é a maneira de continuar o negócio (começa a trabalhar às 9h, termina às 22h, ganha entre R$ 1.500 a R$ 2 mil por mês) que tanto preza. Turbina a renda com o espaço cedido, no terreno da sua casa, para dois outdoors, pelos quais recebe R$ 550 mensais. Com esse dinheiro, está montando o enxoval do primeiro filho, que nasce em três meses. Vai começando a construir a vida do próximo morador da Entrapulso justamente a partir do dinheiro do outdoor que vê apenas em marrom, pelas costas. Lá na frente, um dos anúncios diz: “Think/desire/live” (pense/deseje/viva). É isso o que Denise está fazendo, enquanto trabalha no fiteiro. Lá ela pensa em carrinhos, em lençóis bordados, material escolar. Talvez matricule seu filho em um curso de inglês.