Filhos do Lixo

Do sonho à realidade de catador

Menino pobre recebeu diploma das mãos do ex-presidente Lula, mas uma década depois revira o lixo em busca da dignidade perdida

Wagner Sarmento
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Wagner Sarmento
Publicado em 25/03/2013 às 6:05
Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
Menino pobre recebeu diploma das mãos do ex-presidente Lula, mas uma década depois revira o lixo em busca da dignidade perdida - FOTO: Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Davi da Silva, 24 anos, sonhou alto quando apertou a mão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 30 de março de 2007. Recebeu, do então mandatário brasileiro, pernambucano feito ele, o certificado do Projovem Urbano, em cerimônia no Chevrolet Hall. Estava, enfim, com o diploma do ensino fundamental. Acreditava que aquele momento, carregado de simbolismo e emoção, seria um divisor de águas: o menino pobre cheio de sonhos e o homem que nasceu na miséria e virou presidente da República. “Foi o momento da minha vida”, diz o jovem, que queria ser eletricista. Meia década depois, o destino enganou os planos. Davi é catador.

Entre os mais de 4 mil alunos que se formavam ali, Davi teve a sorte de ter sido um dos poucos escolhidos para receber o documento das mãos de Lula, a quem agradeceu pela oportunidade. Foi selecionado após levar um cartaz que versava sobre a importância de manter os rios recifenses despoluídos.

O evento também contou com a presença do governador Eduardo Campos e do prefeito do Recife na época, João Paulo. Até então, o adolescente – que estudava na Escola Municipal dos Coelhos – pretendia fazer um curso profissionalizante e se tornar eletricista. “Queria mexer com os fios de alta tensão”, conta.

Em seu discurso, Lula enfatizou que o governo precisava acompanhar e apoiar os jovens nesta trajetória. “A gente não pode virar as costas para vocês. Agora que a gente entregou o diploma, aumenta a responsabilidade”, declarou, na ocasião. A coordenação do ProJovem estimava que 75% daqueles formandos continuariam nos estudos. Davi estava em outra estatística. Parou ali. Nunca mais pegou em livro.

Conheceu o crack, desconheceu-se. Passou a trabalhar como ajudante de pedreiro, mas perdeu o emprego. Casou-se, mas quase perdeu a esposa, com quem tem duas filhas, hoje com 3 e 5 anos. “Teve uma hora que ela não aguentou mais e foi clara: ou o crack, ou ela”, conta.

Faz três anos que Davi escolheu a família. Garante que não faz mais uso da pedra da morte. “Demorei para sair. Não é fácil. Já vi amigo precisar vender a carroça para sustentar o vício e pagar dívida. Quero isso mais não”, desabafa.

Há dois anos, trabalha como catador. Chegou a vaguear pela região central do Recife, mas achou perigoso. Viu um colega ser morto carbonizado por um desafeto e desistiu de lá. Migrou para Boa Viagem. Mora no Jordão e, três vezes por semana – segunda, quarta e sexta-feira, dias em que os lixos são depositados nas calçadas –, empunha a carroça por longos quilômetros em busca de alumínio, plástico e papelão.

Na área nobre da cidade, bem diferente de onde mora, já viu Dilma Rousseff, Zezé Di Camargo & Luciano e mais recentemente Elton John. “Quem esteve por aqui esses dias foi aquele gringo, John Lennon”, confunde-se. No lixo, já achou luxo: duas câmeras digitais, relógio, telefone celular e até televisão.

LOTEADO
- Os catadores de Boa Viagem loteiam o bairro entre eles. Davi atua numa faixa que compreende a Rua Capitão Rebelinho e a Avenida Conselheiro Aguiar. São mais de 30 edifícios, um hotel e algumas lojas. Há um pacto de boa convivência que proíbe um profissional de atuar na área do outro, embora sempre haja brecha para os transgressores.

“Na verdade, ninguém é dono de lixo, né? E não é bom ficar discutindo. A gente tenta levar na boa, procuro respeitar o espaço dos outros”, afirma. “Uma vez, sem querer, catei recicláveis no ponto de outra pessoa. Ele já chegou brigando, me desculpei e fui embora”, conta.

Em toda jornada de trabalho, Davi faz duas vezes o percurso entre o Jordão e Boa Viagem. Aproximadamente 40 quilômetros ao todo. Ignora o cansaço para tentar incrementar a renda. Na ida, carroça vazia, não sente tanto o trajeto de mais de uma hora. Na volta, quase 300 quilos para carregar, sonha em reatar o passado que ficou no aperto de mão com o presidente Lula.

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