Há um abismo sem fundo entre aquilo que separa o amor da barbárie. Há também um sentimento que insiste, apesar do absurdo, em associar os dois. “Foi ciúme” é uma das frases rainhas entre aqueles que, ainda com a roupa suja de sangue, chegam às delegacias após matar a própria mulher. “Foi ciúme” é ainda uma fala que parte da sociedade usa para explicar para si mesma uma violência que não pode ser justificada – e, ao agir assim, essa sociedade faz eco com o assassino e termina culpando a vítima. “Foi ciúme”: a frase usada por Marcos Aurélio Barbosa da Silva, 24 anos, no momento em que era interrogado pelo delegado João Gaspar, do Departamento Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), já havia sido dita várias vezes naquele local. Marcos tentava justificar o assassinato, na madrugada do dia 17, da professora Sandra Lúcia Fernandes, 48 anos, e do filho dela, Icauã Rodrigues, 10. Recorria, como os outros, a uma espécie de álibi na tentativa de encobrir o indizível do seu ato. Teria visto Sandra beijar outro homem. O depoimento, é claro, repercutiu na imprensa e redes sociais: logo, surgiram manchetes como “Namorado enciumado mata professora e filho a facadas.”
“Fui a primeira pessoa que teve contato com Marcos após ele ter cometido os assassinatos. Por minha experiência, não acredito que Sandra tenha beijado nem ficado com ninguém. Ele trouxe essa história para fazer a defesa dele. E mesmo que isso tivesse acontecido, não serviria para explicar o que ele fez”, diz João Gaspar, delegado há 15 anos. Ele aponta: Marcos blindou-se de um fato cruel. Sandra não está aqui para questionar seu depoimento. Amigas da professora que conviveram com o casal – junto há mais de dois anos – apontam para um comportamento que demonstrava elevada insegurança do rapaz.
“Ficamos juntos das 16h às 23h no domingo, fomos para os Quatro Cantos, para o Alto da Sé. Ela estava muito feliz por ter passado em um curso de direito, estava cheia de planos. Eles estavam bem. Não existe isso de beijo em outro homem. Sandra era apaixonada por ele. Acho que Marcos tinha, na verdade, inveja da vida dela”, diz a professora Maria Goretti Morais.
“Ela dizia que ele vivia perto, nunca se afastava dela. Um dia, estávamos no Mercado da Boa Vista, com vários amigos, e de repente ele foi embora. Depois, retornou. Perguntei a ela o que tinha acontecido, ela falou que era ciúme dele”, conta Maria de Lourdes Florentino da Silva, amiga muito próxima a Sandra. Feminista atuante, a professora não compactuava nem alimentava o sentimento: quando Marcos desaparecia, ela continuava com os amigos.
“O ciúme deve ser lido como mecanismo de controle sobre a mulher”, diz a pesquisadora Ana Paula Portella, autora do estudo Configurações de homicídios de mulheres em Pernambuco, onde analisa casos de homicídios de homens e de mulheres ocorridos no Estado de 2004 a 2012. Para ela, os homens instrumentalizam o ciúme e o usam como escudo. Muitas vezes esse sentimento é entendido como sinal de amor pelas mulheres. “O ciúme é um elemento importantíssimo, porque pode ser sinal de que a relação vai degringolar para a violência. É pisca-alerta para cair fora.”
O uso do sentimento como escudo é visto com preocupação pela advogada Andréa Campos, uma das coordenadoras do Núcleo de Estudos de Gênero Izaelma Tavares, da Universidade Católica de Pernambuco (Izaelma foi assassinada com oito tiros pelo marido, o policial civil Eduardo Moura Mendes, na frente do filho de 5 anos). “A passionalização da barbárie ajuda a perpetuar a barbárie”, observa. “Quando colocamos o ciúme no meio desses assassinatos, os associamos à tragédia romântica. Há uma beleza que atrai muita gente, que deixa de enxergar a barbárie. Transforma-se o crime em algo fascinante, e deixa-se de combatê-lo.”
Coordenador do Núcleo de Apoio à Mulher do Ministério Público de Pernambuco, o promotor de justiça João Maria Rodrigues Filho vê fragilidade no discurso do ciúme como álibi. Para ele, é antes de tudo a certeza da posse. “A mulher sente ciúme também, mas ela não tem esse sentimento de propriedade.”