Maria não sabia a força que tinha. Não sabia nem que tinha força. Foram tantas dores. Tantas perdas. Vinte e um anos apenas. Cinco filhos. O penúltimo foi parido no meio da rua. Com um cachimbo na mão, noiada, mais morte do que nascimento, ela sentiu a cabeça do menino saindo. Foi socorrida pelos bombeiros. O Conselho Tutelar tirou-lhe os primeiros filhos. O crack roubou-lhe a vida. Em agosto do ano passado, Maria cruzou as portas do Centro de Acolhimento Intensivo Mulher decidida a tomá-la de volta. Já carregava outra criança na barriga. Mas dessa vez seria diferente. Ela não fugiu. Não desistiu. Não recaiu. Pela primeira vez, soube o que era um pré-natal. Na última quinta-feira, Maria conversou com a reportagem com a lucidez de uma sobrevivente. “Hoje eu trabalho, tenho carteira assinada, pago meu aluguel, cuido do meu filho. Descobri o que é ser feliz.” Entre arrependimentos e esperanças, deixou escapar um achado: “Eu não preciso mostrar para os outros que mudei. Eu quero provar pra mim. Sou eu que tenho que acreditar em mim.”
Joana, Beatriz, Marcela e Luíza – as mulheres fotografadas nesta reportagem – estão, a duras crises de abstinência, aprendendo a acreditar em si mesmas. Cada uma delas (em tempos diferentes, mas com histórias comuns de violência) está tentando largar o crack. Todas são hoje atendidas no Centro Intensivo Mulher, o mesmo local que acolheu Maria, uma das primeiras a receber assistência na casa. Inaugurado em agosto, o serviço faz parte do Atitude, o programa estadual de enfrentamento ao crack. O espaço não pode ter seu endereço divulgado, assim como as jovens entrevistadas precisaram ter o nome trocado. Medidas de segurança, já que a maioria foi ou ainda é ameaçada de morte. Cercado por verde, o centro tem uma especificidade que se revela fundamental nesse caminho de retomada: as mulheres que chegam grávidas podem continuar com seus bebês após o parto. Só a possibilidade de permanecer perto da cria já abre a perspectiva de um recomeço diferente.
Hoje na casa são 24 mulheres (uma grávida), quatro bebês e uma criança. Enquanto amamenta a filha com 19 dias de nascida, Joana conta, vergonha misturada à tristeza, que suas outras duas meninas lhe foram tiradas por causa da droga. “Elas vivem no interior. O pai foi assassinado na minha frente. Já fugi de duas casas de recuperação. Eu vou ficar nessa para sempre? Só de derrota em derrota e nada de vencer?”, questiona, emendando ela mesma a resposta. “Não vou perder de novo a minha filha. Vou criá-la. Só o que eu quero é ser feliz. E me casar, claro”, completa, deixando escapar um leve sorriso. Assim como Joana, o histórico das mulheres atendidas no centro é, em geral, de muitas idas e vindas, entradas e saídas em outros serviços do próprio programa Atitude.
A tentativa de empoderar mulheres fragilizadas pelo vício, pela distância ou ausência da família e vítimas de violências cotidianas passa por um atendimento personalizado, que atente às especificidades femininas. Quando chegam à casa, todas elas iniciam o seu PIA (Programa Individual de Atendimento). É esse olhar particular para o que cada uma deseja que procura reunir as possibilidades de um enfrentamento mais real da dependência. A opção não é pela tutela, mas pela busca da autonomia. “Construímos aqui dentro um processo de empoderamento que vai ajudar a construir essa independência. É acreditar que, quando elas estiverem prontas para sair, vão ter força para continuar, para ir atrás de suas coisas, dos seus desejos”, explica a coordenadora do centro, Marilak Terto. É a melhor aposta para reduzir as chances de novas recaídas.
Beatriz está na sua quinta tentativa. Em todas as outras, o máximo que conseguia passar internada era um mês. Agora já soma dois meses e 13 dias no centro. Não foi só o tempo que mudou. Tudo está diferente. “Eu era muito agressiva. Com tudo, estourava. Aprendi aqui a controlar meu temperamento. A saber ouvir. Aprendi a conviver com a minha abstinência.” Ouvir Beatriz falar é um alento. Pela consciência de tudo o que viveu e do que não quer mais para si. Trocava sexo por droga. Foi estuprada três vezes. Uma delas com uma arma na cabeça. O que mudou? O desejo. “Precisei passar por muita coisa para descobrir que eu não quero mais isso pra mim. Nem quero viver aqui dentro, isso aqui é uma passagem. Um lugar pra eu encontrar minhas forças”, diz. Ela sabe que o verdadeiro teste é a rua. “Eu digo a você que eu estarei pronta quando sair daqui. Quando eu chegar lá fora e ficar limpa. Não um dia, ou dois. Mas o resto dos meus dias. Aí, eu vou dizer: ‘eu venci o crack’.”