É mais do que ficar sem um prato de comida. Mais do que abrir mão de uma cama limpa e de um banho de chuveiro. Vai além de um endereço fechado. O corte de verbas que atingiu o Programa Atitude e a consequente interrupção de alguns dos seus serviços no Recife é um baque na esperança. Desde agosto passado, o principal programa estadual de atendimento aos usuários de drogas, principalmente o crack, suspendeu os dois serviços que atendiam a população masculina na capital. Estão sem funcionar o Centro de Apoio, localizado na Rua Estrela, no bairro de Parnamirim, na Zona Norte, e o Centro de Acolhimento Intensivo, em Aldeia, no município de Camaragibe. São cerca de mil atendimentos que deixam de acontecer a cada mês de paralisação. Para um público com um perfil extremamente vulnerável e exposto à violência, essa interrupção pode custar um preço alto.
Quando cai a noite, um passeio pelo Centro da cidade ajuda a dimensionar a falta que o serviço faz. É fácil encontrar em pontos como a Rua do Imperador, o Parque 13 de Maio e a Praça da Independência muitos dos usuários de crack até então atendidos pelo Atitude. À medida que as horas avançam, outros vão se somando. A maior parte dorme por ali mesmo. No primeiro momento, a reclamação é pelo imediatismo, pela perda do que se pode mensurar. “Lá era um adiante para mim. Eu tinha as três refeições, um banho decente. A gente sabia para onde ir. Agora é cada um por si. Tô até agora no sarro (fome, na linguagem da rua)”, conta Bruno Nascimento dos Santos, 25 anos. Na noite anterior, ele e um colega tinham passado a madrugada bebendo e fumando crack. Consumiram 12 pedras.
À medida que a conversa avança, os prejuízos trazidos pela interrupção dos serviços vão se revelando mais extensos. Usuário de drogas há mais de dez anos, Roberto de Lima Silva, 29, diz que o Atitude era um lugar aonde o usuário podia ir “buscar um pouco de dignidade”. “Quando o corpo tava muito detonado ou tinha uma rixa, uma ameaça de morte, o programa dava essa proteção, essa cobertura. Vi muita gente passar duas semanas lá dentro e ganhar peso, dar um tempo, sair mais gordo, irreconhecível”, diz. Com foco maior na política de redução de danos, e não na abstinência da droga, o Atitude virou uma referência para quem não quer necessariamente parar com o uso, mas também não quer morrer pelas mãos do crack. “Ele ajudava a gente a segurar nossa onda”, resume Roberto.
Em junho deste ano, em cerimônia no Palácio do Campo das Princesas, o governador Paulo Câmara anunciou a expansão do programa. As ações iam alcançar 126 pontos de atendimento e atender 90 municípios pernambucanos. Dois meses depois, o que ocorreu foi o contrário. Diante da crise financeira que varre o País e o Estado, o governo saiu cortando gastos e o Atitude não escapou do enxugamento. Enfrentou uma paralisação de funcionários que estavam com salários atrasados. Nos cortes, perdeu cerca de 100 profissionais, teve equipes de rua reduzidas e o fechamento das duas unidades no Recife.
A Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, responsável pelo programa, garante que a interrupção dos serviços na capital é temporária. Diz que, dentro de um mês, o atendimento do Centro de Apoio, prestado na Rua Estrela, será reaberto, desta vez no bairro de Campo Grande, também na Zona Norte do Recife. “Já alugamos uma nova casa e estamos reestruturando o serviço. Até o final do ano, com certeza as atividades serão retomadas”, afirma Márcia Ribeiro, secretária-executiva da Política sobre Drogas da secretaria. A capacidade continuará a mesma, com 30 atendimentos diários e vagas para 15 pernoites.
Já o Centro de Acolhimento Intensivo, que funcionava em Aldeia, ainda não tem prazo para reabrir. A expectativa é de que o serviço só seja reativado no próximo ano. Márcia Ribeiro diz que, apesar da casa ter capacidade para 30 usuários, no momento do fechamento das atividades só havia 14 internos. “Todos foram transferidos para os outros centros de acolhimento do programa. Para esses usuários, não houve prejuízo no atendimento”, observa. Com os cortes, o programa perdeu cerca de 15% do seu orçamento. Os repasses que eram de R$ 17 milhões caíram para R$ 15 milhões. Ela garante, no entanto, que o programa foi um dos que tiveram o menor corte de recursos na secretaria. “Não tínhamos como blindar o programa diante dos ajustes realizados pelo governo em todas as áreas. Mas tivemos a preocupação de impactar o menos possível para o usuário”, afirma.
Criado há quatro anos, o programa é um braço do Pacto pela Vida, conjunto de ações que norteiam a política de segurança de Pernambuco e têm como principal meta a redução do número de homicídios no Estado. Amargando seu pior momento, o pacto tem se mostrado incapaz de frear o crescimento contínuo da matança que só este ano, de janeiro a outubro, já somam 3.187 assassinatos. É mais do que todo o ano de 2013, quando o programa teve seu melhor desempenho (3.102 homicídios). Considerando que uma das principais motivações para a criação do Atitude foi justamente reduzir a mortandade entre os usuários de crack, a interrupção dos serviços no Recife e a redução do programa em todo o Estado chegam na pior hora.
A ideia, desde a implantação, era atender prioritariamente os usuários jurados de morte, em função de dívidas ou desavenças decorrentes do uso da droga. Toda a rede de proteção e assistência foi estruturada para atender esse perfil de usuário. Dormindo na rua, Marcelo Silva, 28, diz que não pode voltar para a sua casa, no bairro de Santo Amaro, na área central da capital, porque é ameaçado por traficantes da área. “Antes eu ia lá para o Centro de Apoio, na Rua Estrela. Sempre conseguiam um lugar para eu dormir. Agora fico pela rua mesmo. Melhor do que amanhecer morto.”