A ONG feminista Anis, sediada em Brasília, fez parte de um grupo de ativistas e acadêmicos que pediu ao STF que autorizasse o aborto de fetos com anencefalia. Em 2012 uma decisão histórica concedeu às mães desses bebês o direito de abortar. Em meio à epidemia de zika e a explosão de casos de microcefalia, associada à doença, a entidade reabre o debate e defende que a permissão seja estendida às grávidas infectadas pelo vírus. Em entrevista exclusiva à repórter Ciara Carvalho, a pesquisadora e professora da Anis Débora Diniz explica que a discussão central não é a microcefalia, mas o direito ao planejamento familiar e à saúde da mulher.
JORNAL DO COMMERCIO – Médicos apontam que uma das questões mais difíceis no caso de aborto dos bebês com microcefalia é definir a forma como isso seria feito, já que a identificação da doença só é possível, em geral, com 30 semanas, quando a gravidez já está num estágio muito avançado. Como você vê essa situação? A ação sugerida pela Anis trata de como seria esse procedimento?
DÉBORA DINIZ – Essa é uma questão que não se coloca diante da ação que estamos planejando, pois o fundamento do direito ao aborto não é a microcefalia ou qualquer outra síndrome neurológica do feto, mas o direito ao planejamento familiar e direito à saúde da mulher. É importante destacar que hoje já se anunciam efeitos mais complexos à infecção de zika vírus do que aquilo que se chama microcefalia. Especialistas apontam que o mais correto é denominá-la síndrome do zika, que tem efeitos neurológicos mais abrangentes e diversos que a microcefalia. Por isso mesmo, para uma mulher hoje no Brasil, saber-se grávida e infectada por zika já é um cenário de intenso sofrimento, desproteção e incerteza diante de uma epidemia grave, não controlada pelo Estado e de efeitos ainda não completamente mapeados. O nosso ponto é que diante desse quadro, a única possibilidade de garantia plena de direitos está em assegurar o acesso à informação sobre a epidemia, incluindo acesso ao diagnóstico da infecção por meios laboratoriais ou clínicos a todas as gestantes, e a garantia de que, a partir dessas informações, a mulher possa decidir por qualquer das opções: interromper a gestação, por meio do aborto legal, ou prosseguir com ela, com garantias de proteção plena à maternidade e à infância. Assim, no que diz respeito ao direito ao aborto, é preciso garanti-lo a partir do diagnóstico de infecção por zika vírus, como um direito da mulher.
JC – A autonomia da mulher sobre o próprio corpo é uma das questões centrais para a defesa do aborto, seja ele em que circunstância for. No caso da microcefalia, o fato de essa condição primária estar associada à interrupção de uma vida em função de uma malformação compromete ou dificulta o debate?
DÉBORA – Vejam que o ponto central aqui não é a possível malformação, mas a epidemia. Independentemente dos efeitos concretos que a infecção possa ter no feto, a epidemia já tem efeitos graves nas mulheres. Há tortura em submeter uma mulher à incerteza da epidemia. Isso é especialmente importante ao se considerar quem são as mulheres vítimas da epidemia nas regiões endêmicas: mulheres nordestinas, pobres, com precário acesso a políticas de saúde e outras políticas sociais. É nesses termos que o debate tem que ser feito. Compreendê-lo dessa forma, se não facilita o debate, certamente o torna urgente. O drama dessas mulheres pede ações imediatas para garantia de direitos.
JC – Como você avalia o argumento da eugenia? Ele tem sido recorrente para condenar a interrupção da gravidez nos casos de bebês com microcefalia?
DÉBORA – Esse é um argumento que confunde a conversa. É claro que ele vem de uma preocupação legítima com a vida e os direitos das pessoas com deficiência, mas ele parte também de uma compreensão equivocada sobre o que é a ação e o que se exige do Estado em um momento como esse. Não se trata de provocar a criação de uma política que impeça, dificulte, nem mesmo sugira o não nascimento de fetos com deficiência, mas de reconhecer que, diante do quadro de grave epidemia, somente a mulher pode tomar a decisão de prosseguir ou não com a gestação que se vê atravessada pela infecção de zika vírus. A incerteza e o sofrimento causados pela epidemia são singulares, a decisão sobre a gestação também precisa ser. Ao mesmo tempo, a decisão de prosseguir com a gestação também só pode ser plena se houver garantias de proteção social a essas crianças afetadas pelo vírus, e esse é também um pedido de nossa ação. Por isso, o que planejamos se distancia muito de uma proposta eugênica. Por fim, não há o dever do aborto, mas o direito de escolher sobre como planejar a família.
JC – É fato que a não legalização irrestrita do aborto no Brasil impacta, prioritariamente, as mulheres de baixa renda. E são justamente essas mulheres que, estatisticamente, estão apresentando o maior número de casos de bebês com microcefalia. Ou seja, quem menos tem assistência e acesso à saúde mais tem sido atingido pela epidemia. Você avalia que essa realidade é determinante nesse novo debate?
DÉBORA – Sim, é determinante. Faz parte de entender o que é a epidemia que enfrentamos: uma epidemia grave e que atinge a população mais vulnerabilizada nas áreas endêmicas, com um efeito especialmente grave nas mulheres. Essas são as mesmas mulheres que já não têm garantidas políticas básicas de saúde e assistência social, são as mulheres mais suscetíveis a recorrer a um aborto clandestino e inseguro e também aquelas que terão mais dificuldade em garantir o cuidado de seus futuros filhos com deficiência, caso decidam tê-los. Seja qual for a decisão dessa mulher, de seguir ou interromper a gestação, ela terá dificuldade de fazê-lo no cenário das políticas que temos. É por isso que é preciso uma resposta imediata para garantia de direitos das mulheres diante da epidemia.
JC – Juridicamente, quais são os passos junto ao Supremo Tribunal Federal para encaminhamento da ação proposta pela Anis?
DÉBORA – A ação ainda está em vias de elaboração. Esses passos ainda não estão fechados. Mas estamos trabalhando intensamente para propô-la com a agilidade que a epidemia exige.
JC – Considerando que o debate sobre o aborto pode se alongar por muitos anos, você acredita que haverá uma judicialização dos pedidos de aborto por parte de mães com diagnóstico intraútero de microcefalia?
DÉBORA – Sim, quando não há políticas de proteção plena a direitos, a judicialização é frequentemente o caminho adotado para exigi-las. Mas há um fator importante nessa conversa que não pode ser esquecido: há um recorte social na epidemia. As mulheres que se vejam grávidas e infectadas por zika vírus e possam pagar por um aborto seguro, ainda que ilegal, irão fazê-lo. Para essas mulheres, haverá sempre uma saída lateral à falta de garantia de direitos pelo Estado, que não passa pela judicialização.