Por essas coincidências da vida, o documentarista norte-americano Erol Cichowski desembarcou no Recife no mesmo dia em que a história de Mylene Ferreira foi contada no Jornal do Commercio. Era um domingo. Dia 6 de março. Ele aproveitou uma viagem de negócios ao Rio de Janeiro para tirar uma semana e vir a Pernambuco com um propósito: fazer um documentário focado na vida de mulheres que tiveram bebês com microcefalia. Não buscava explicações científicas. Queria ouvir relatos, dar voz às mães. Elas, por elas. Quando leu sobre Mylene, não teve dúvida: era o que estava procurando. Durante sete dias, acompanhou a jovem em sua cruzada por ônibus e hospitais carregando nos braços o filho Davi, de 8 meses. De volta a Nova Iorque, onde mora, pretende finalizar o documentário nos próximos meses. “Já pensou sua história sendo vista nos Estados Unidos?” Mylene ainda não pensou. “Quando acontecer, vejo isso. Até lá, tenho tanta coisa para cuidar.”
A forma serena como lida com a inusitada visibilidade diz muito sobre a jovem. Desde a publicação da reportagem, há cerca de um mês, Mylene viu a força de sua história fazer mais do que atrair lentes estrangeiras. Viu nascer em sua volta uma corrente solidária que não imaginava ser capaz de despertar. “Foram tantas ligações, tantas pessoas querendo ajudar. Queria conhecer a todos, agradecer um por um. Dizer que isso trouxe mais esperança para a minha vida”, afirma a menina de 22 anos, voz e firmeza de mulher. A esperança aqui não se traduz apenas pela enxurrada de doações que recebeu, mas por ter experimentado um sopro suave de humanidade. Por ter sido abraçada de forma carinhosa, acolhedora, por gente que sequer conhecia. Bem diferente dos dedos e olhares acusatórios que tantas vezes já a condenou por ter um filho com microcefalia. Afago em vez de preconceito transforma vidas.
No meio da sala da casa fincada no pé do morro, em Nova Descoberta, Zona Norte do Recife, tanta generosidade deixou tudo mais divertido, colorido e muito, muito mais barulhento. Mylene monta junto com os filhos Miguel, 3 anos, e Rafael, 2, o tapete de borracha com recortes de bichos que ganhou. Sobre ele, vai espalhando brinquedos e mais brinquedos. Foram tantos que ela tem dificuldade para botar ordem na brincadeira. “Quando penso que, até o mês passado, Davi não tinha nenhum. Fico sem acreditar. Os meninos estão enlouquecidos. Mas já ensinei que não é para usar tudo de uma vez. Vou guardar uma parte, para eles irem abrindo aos poucos.”
No quarto improvisado na cozinha da mãe, onde ela e os filhos dormem desde que a jovem se separou do ex-marido, mais flagrantes de solidariedade. Nas prateleiras, um amontoado de fraldas e latas de leite empilhadas. Cestas básicas num canto da parede garantem um amanhã sem tanta apreensão. “Com meus pais desempregados, não sabia até quando poderíamos comprar comida. Meu maior desespero é ver meus filhos pedindo um biscoito e eu não ter como dar. Por um tempo, esse receio está afastado. Ganhamos muitos alimentos”, agradece.
Mas é o que não pode ser fotografado, mensurado, que faz Mylene ficar ainda mais comovida. Muitas pessoas a procuraram simplesmente para se doar, oferecer o melhor de si. Foi o caso de uma psicóloga que se dispôs a iniciar um acompanhamento com Miguel, o filho mais velho que, de tanto ver o pai bater na mãe, começou a reproduzir na sua fala de criança que mulher tem mesmo que apanhar de homem. A preferência do garoto por brincadeiras mais violentas também despertaram a preocupação de Mylene. “Ela se propôs a acompanhá-lo, vir aqui em casa. É um presente que, para mim, não tem preço.”
A intenção de ajudar, além do imediatismo, se repetiu entre muitos que se sensibilizaram com a força da jovem mãe. Várias pessoas procuraram Mylene com o objetivo de acompanhar sua vida dali por diante e, de alguma forma, contribuir com um futuro mais promissor para ela e os filhos. O documentarista norte-americano faz parte dessa turma. Após a veiculação do documentário, ele pretende criar um fundo que será revertido para ajudar Mylene e outras mães de bebês com microcefalia. “Ela tem uma dignidade e carrega uma verdade muito grande, um amor profundo pelos filhos. Isso me deixou comovido e impressionado. Apesar de todas as dificuldades que já viveu, não se coloca na condição de vítima. Ela olha para a vida com alegria e coragem”, pontua Erol Cichowski.
Para redesenhar esse novo futuro, um desafio. Encontrar uma escola para os dois filhos mais velhos de Mylene. Eles passam o dia em casa, enquanto a mãe enfrenta a maratona de terapias, exames e assistências para Davi. Diante da dificuldade de conseguir uma vaga de educação infantil na rede pública, o documentarista norte-americano se propôs a financiar parte desses estudos. “Seria ótimo se outras pessoas pudessem ajudar. Garantir uma educação de qualidade para essas crianças desde já é fundamental”, propõe. Quase em silêncio, Mylene alimenta o sonho. Deseja um amanhã diferente do hoje para seus meninos. “Quero que eles cresçam sabendo a importância dos estudos”, diz, imaginando ela mesma, o dia em que conseguirá cursar uma faculdade.