Anoiteceu no Recife. As ruas, esvaziadas, abrigam o que a cidade não quer ver. Telma deita com as mochilas amarradas ao pescoço. Idalécio foi roubado na Praça do Derby. Tocaram fogo em todos os seus documentos. É preciso dormir. Mas o medo não deixa. Não é bem medo, é sobrevivência. Quando chove, nem é mais o medo. É o frio, o corpo molhado, o colchão encharcado, o papelão em pedaços. O ônibus passa e joga água sobre a calçada. Sai de um canto, corre para o outro. O dia foi de trabalho duro. Idalécio carrega frete na Ceasa. As costas, tem dia, parecem que vão se partir. Telma fez prova para ser cobradora de ônibus. Mas quando viram no endereço o nome de um abrigo, disseram logo: “A gente entra em contato”. Nunca entraram. É preciso dormir. Mas na rua ninguém dorme.
Enquanto a cidade descansa, eles se amontoam sob as marquises. Lotam as portas imponentes de palácios, igrejas, bancos. São dezenas. Centenas. E ninguém vê. É como se não existissem. No último domingo, dez manequins despidos, estendidos lado a lado, sobre pedaços de papelão e folhas de jornais, quebraram essa invisibilidade. O grupo Seja a Mudança levou para o cartão-postal do Recife o grito silenciado: “Rua não é moradia. Implantação de um abrigo noturno já”, estampava a faixa. A reivindicação é antiga. Ainda mais urgente agora, inverno instalado e com a chuva varando a madrugada. Os dois centros da capital que atendem a população de rua fecham as portas às 17h. Justo quando é preciso descansar.
O que se quer? Uma cama, um banho, um chuveiro, uma janta, uma café da manhã, um teto seguro. Um lugar para fechar os olhos e acordar com cara de trabalhador no dia seguinte. “Como é que a pessoa vai render no trabalho no outro dia?”, questiona Ednaldo José da Silva, 46, ajudante de pedreiro como profissão. Camisa social de manga comprida, calça de tecido, quem olha para ele nem imagina que suas noites são na rua. Telma, Idalécio, Ednaldo são trabalhadores. Fogem aos estereótipos que a sociedade costumou aprisionar a quem não tem um canto para dormir. E não são exceção. “Setenta por cento dos moradores de rua do Recife são trabalhadores. Mas a renda não é suficiente para alugar um quarto”, atesta Luciana Valença, da Pastoral do Povo de Rua, ligada à Igreja Católica.
Trabalham fazendo uma coisa aqui outra ali, espalham currículo. Correm atrás do emprego com carteira assinada. Como o dinheiro não é certo, não conseguem alugar o tal quartinho. Qualquer barraco custa R$ 70, por semana. Tem hora que não dá. É escolher entre comer ou ter um canto. A barriga fala mais alto. “A gente poderia começar o dia disposto para trabalhar, procurar emprego fixo. Mas amanhece com sono, fome e com a cara amassada. Não dá nem coragem de correr atrás da vida. Teve uma vez que eu não aguentei enrolar o sono e apaguei. Quando acordei, tinham levado o lençol e o colchão. Eu nem percebi. A gente já passa tanto tempo sem dormir, que uma hora desaba”, conta Idalécio. Ele anda com a lei que trata de população de rua na ponta da língua. “É o decreto 7.053. Ela nos garante o direito ao abrigo noturno. Mas não é respeitada”. “Apesar de ter uma lei que nos protege, ela está lá, no papel, e a gente aqui”, reforça Telma.
À frente do grupo Seja a Mudança, que organizou o protesto no Marco Zero, Igor Sacha diz que o abrigo noturno não é a solução, mas garante uma dignidade mínima para a população de rua. “É uma das estratégias para fazer com que eles voltem a caminhar com as próprias pernas, para que possam se refazer psicologicamente, ter uma qualificação, estarem mais organizados para enfrentar um dia de trabalho”, diz. No Nordeste, pelo menos três capitais já oferecem o serviço: Fortaleza, João Pessoa e Salvador. “Por que ainda não temos o equipamento aqui, onde há uma grande demanda de moradores de rua?”, pressiona. Não há dados atualizados, mas a prefeitura estima que cerca de 900 pessoas vivem nas ruas da capital.
Igor lembra que o que não falta no Centro do Recife, onde se concentra essa população, são casas fechadas, que poderiam abrigar o serviço. “Primeiro, não é um custo alto. E a quantidade de imóveis nessa região que poderiam ser cedidos em troca de pagamento de dívida de IPTU é gigante”, defende. Ele garante que a mobilização só está começando. Em parceria com a Pastoral do Povo da Rua e o Movimento Nacional do Povo de Rua, o grupo está recolhendo assinaturas para levar ao prefeito Geraldo Julio e cobrar a abertura do espaço. “Vamos agendar também uma audiência na Câmara dos Vereadores para pressionar o Legislativo a entrar nessa briga.” Um direito que Amaro Pedro da Silva Santos, 43, 30 anos de rua, resume numa palavra: cidadania. “Não somo marginais. Somos gente.”